Uma terceira onda de autocratização está aqui: o que há de novo nisso?

Anna Lührmann e Staffan I. Lindberg, Journal Democratization (Taylor & Francis Online), 01/03/2019

Tradução livre (ainda sem revisão) de Renato Jannuzzi Cecchettini

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Para citar este artigo: Anna Lührmann & Staffan I. Lindberg (2019): Uma terceira onda de autocratização está aqui: o que há de novo sobre isso ?, Democratização, DOI: 10.1080 / 13510347.2019.1582029 | Artigo recebido em 13 de setembro de 2018 e aceito em 30 de janeiro de 2019.

Resumo

Menos de 30 anos depois que Fukuyama e outros declararam o domínio eterno da democracia liberal, uma terceira onda de autocratização se manifesta. Declínios graduais de atributos do regime democrático caracterizam a autocratização contemporânea. Além disso, nos faltam as ferramentas conceituais e empíricas apropriadas para diagnosticar e comparar esses processos furtivos. Em relação à esta lacuna, este artigo oferece a primeira visão empírica abrangente de todos os episódios de autocratização de 1900 até hoje baseado no Varieties of Democracy Project (V-Dem). Demonstramos que uma terceira onda de autocratização está realmente se desdobrando. E sobretudo afeta democracias com recuos graduais sob uma fachada legal. Embora isso seja motivo de preocupação, a perspectiva histórica apresentada neste artigo mostra que o pânico não é embasado: os atuais declínios são relativamente brandos e a participação global dos países democráticos permanece perto de seu pico histórico. Assim como era prematuro anunciar o “fim da história” em 1992, é prematuro proclamar o “fim da democracia” agora.

Introdução

O declínio dos atributos do regime democrático – a autocratização – emergiu como um desafio global contemporâneo. Os retrocessos democráticos em países tão diversos como o Brasil, Burundi, Hungria, Rússia, Sérvia e Turquia provocaram uma nova geração de estudos sobre a autocratização (1).

Duas questões-chave ainda não estão estabelecidas neste revigorado campo.

Primeiro, os estudiosos concordam que as democracias contemporâneas tendem a corroer gradualmente e sob o disfarce legal (2). As rupturas democráticas costumavam ser eventos bastante abruptos – por exemplo, golpes militares – e relativamente fáceis de identificar empiricamente (3). Agora, os regimes multipartidários lentamente se tornam menos significativos na prática(4), tornando cada vez mais difícil identificar o fim da democracia. No entanto, diante desse consenso emergente, não temos as ferramentas conceituais e empíricas adequadas para analisar sistematicamente esses processos obscuros.

A segunda questão-chave, em parte um produto da primeira, é que os analistas discordam sobre quão importante é a atual onda de autocratização. Alguns traçam paralelos com o colapso das democracias na década de 1930 e o surgimento de demagogos antidemocráticos (5). Outros afirmam que o mundo é ainda mais democrático (6) desenvolvido (7) e emancipado (8) do que nunca durante o século XX. Quão larga e profunda é a atual tendência de autocratização?

Este artigo aborda essas lacunas com uma estratégia de três frentes. Primeiro, ele fornece uma definição de autocratização como um substancial declínio de requisitos do núcleo institucional para uma democracia eleitoral. Essa noção é mais abrangente do que o termo frequentemente usado de retrocesso democrático, que sugere uma reversão involuntária de volta aos precedentes históricos. Nossa noção de democracia é baseada na famosa conceituação da democracia eleitoral de Dahl como ‘poliarquia’, ou seja, eleições limpas, a liberdade de associação, sufrágio universal, um executivo eleito, bem como a liberdade de expressão e de fontes alternativas de informação (9).

Em segundo lugar, este artigo oferece um novo tipo de operacionalização que de forma sistemática capture o significado conceitual de autocratização como episódios de mudança substancial com base em dados do Variety of Democracy Project (V-Dem). Esta nova medida tem quatro grandes vantagens: mede o que realmente queremos estudar; é sensível às mudanças na implementação de facto das regras democráticas; tem nuances suficientes para também capturar processos graduais de autocratização e, assim, evitar influenciar a amostra em direção a mudanças rápidas. Finalmente, permite-nos identificar o ano do início dos processos de autocratização, o que abre novos caminhos para estudos empíricos.

Em terceiro lugar, este artigo emprega a nova medida em um estudo sistemático que acrescenta uma perspectiva histórica à autocratização contemporânea. As descobertas resultantes são misturadas. Por um lado, somos os primeiros a mostrar que uma “terceira onda de autocratização”, afetando um elevado número sem precedentes de democracias, está em curso. Essa onda se desdobra lenta e gradativamente, dificultando a evidência. As elites dominantes evitam movimentos repentinos e drásticos para a autocracia e, em vez disso, imitam as instituições democráticas, ao mesmo tempo em que gradualmente desgastam suas funções. Isso sugere que devemos prestar atenção ao chamado de alarme emitido por alguns estudiosos.

Por outro lado, as evidências aqui também mostram que ainda vivemos em uma era democrática com mais da metade de todos os países qualificados como democráticos. Além disso, a maioria dos episódios de autocratização contemporânea não são apenas mais lentos, mas também mais fracos que seus primos históricos, pelo menos até o momento. Assim, os países afetados permanecem mais democráticos do que os seus equivalentes atingidos por ondas anteriores do autocratização.

Abaixo, vamos primeiro buscar uma revisão da literatura seguido por uma reconceituação da autocratização com acompanhamento de operacionalização, descrição dos dados e codificação de procedimentos. A seção seguinte apresenta uma série de análises descritivas das três ondas de autocratização, seguidas de um exame mais detalhado da autocratização das democracias. A seção final introduz uma nova métrica – a taxa de autocratização – como um indicador do ritmo de tais processos. Concluímos com um resumo das descobertas e caminhos para pesquisas futuras.

Estado da arte no presente

Muitos notaram que o otimismo estimulado pela força da terceira onda de democratização (10) era prematuro, incluindo rebaixamento do processo inverso de Fukuyama (11) – autocratização – aos livros de história. Uma infinidade de autocracias desafiou a tendência (12) ou fez algumas fracas reformas, permanecendo na zona cinzenta entre democracia e autocracia (13).

No entanto, quando surgiram avaliações sobre “liberdade em retirada” (14) ou “reversão democrática” (15), elas foram frequentemente desafiadas. Na época, as medidas globais de democracia tinham meramente estabilizado e democracias estabelecidas não pareciam estar em perigo (16). Agora, há evidências de que uma reversão global está desafiando uma série de democracias estabelecidas, incluindo os Estados Unidos, que foram rebaixadas tanto pela Freedom House quanto pela V-Dem em 2018 (17). A autocratização substancial foi registrada nos últimos 10 anos em países tão diversos como Hungria, Índia, Rússia, Turquia e Venezuela (18). Um quadro cada vez mais sombrio está emergindo no estado global da democracia (19) mesmo que alguns sustentem que as conquistas da terceira onda de democratização são ainda perceptíveis (20).

Waldner e Lust concluíram recentemente que “o estudo do retrocesso [democrático] é uma importante nova fronteira de pesquisa” (21). Uma série de novos estudos sobre autocratização parece ter gerado um consenso emergente sobre um insight importante: o processo de autocratização parece ter mudado. Bermeo, por exemplo, sugere um declínio das “formas mais flagrantes de retrocesso” – como os golpes militares e a fraude eleitoral no dia das eleições (22). Por outro lado, formas mais clandestinas de autocratização – assédio da oposição, subversão do accountability horizontal – estão em ascensão (23). Svolik também argumenta que o risco de golpes militares diminuiu ao longo do tempo em novas democracias, enquanto o risco de autogolpes permanece (24). Mechkova et al. demonstram que, entre 2006 e 2016, a autocratização prejudicou principalmente aspectos como a liberdade de imprensa e o espaço para a sociedade civil, deixando as instituições de eleições multipartidárias em vigor (25). Coppedge destacou a concentração gradual do poder no executivo como um teste padrão contemporâneo chave de autocratização – ao lado o que ele chama o caminho mais “clássico” de repressão intensificada (26). “O engrandecimento do Executivo” é o termo que Bermeo usa para esse processo quando “executivos eleitos enfraquecem os controles do poder executivo um a um, realizando uma série de mudanças institucionais que dificultam o poder das forças da oposição de desafiar as preferências do Executivo” (27).

Enquanto a literatura concorda que o processo de autocratização mudou, ela ainda não oferece uma forma sistemática de medir o novo modo de autocratização. As contribuições baseiam-se em exemplos de casos (28) estatísticas sobre indicadores selecionados de autocratização gradual – isto é, golpes militares e fraude eleitoral (29), pesquisas de opinião (30), ou mudanças nas medidas quantitativas ao longo de um período de tempo definido (31). A maioria dos estudos existentes sobre as causas da autocratização (32), bem como as visões gerais descritivas (33), também são tendenciosas, pois incluem apenas casos de completa desarticulação das democracias. Tais abordagens binárias não só não conseguem captar os processos muitas vezes prolongados, graduais e opacas de mudança de regime contemporânea (34), mas também exclui variações importantes: autocratização em democracias que não levaram (ainda) à completa desagregação (por exemplo, a Hungria) e reversões nas autocracias eleitorais que nunca se tornaram democracias (por exemplo, o Sudão).

Isso é importante porque o arquétipo das inversões dramáticas à autocracia fechada está se tornando raro – assim como as autocracias fechadas. Cerca de metade de todos os países eram autocracias fechadas em 1980, mas em 2017 eles representam apenas 12% dos regimes do mundo (35). Autocratas contemporâneos dominam a arte de subverter os padrões eleitorais sem romper completamente sua fachada democrática (36). Alguns rotularam esse fenômeno de “democracia não liberal” (37). Assim, a partir de 2017, a maioria dos países ainda se qualifica como democracias (56%) e a forma mais comum de ditadura (32%) são as autocracias eleitorais (38).

Esse domínio dos regimes eleitorais multipartidários fez com que outros analistas postulassem que a democracia como norma global após o fim da Guerra Fria (39) continua a moldar as expectativas e o comportamento até mesmo dos autocratas (40). Se isso é verdade, não é de surpreender que as súbitas reversões do autoritarismo tenham saído de moda, já que envolvem a abolição de eleições multipartidárias em um golpe. Tais violações evidentes das normas democráticas carregam consigo altos custos de legitimidade (41). Obviamente, eleições “roubadas” desencadearam protestos em massa que levaram às revoluções coloridas (42). Da mesma forma, a comunidade internacional tende a sancionar os líderes políticos que explicitamente desrespeitam os resultados eleitorais, e a ajuda internacional é frequentemente condicionada a um país que realiza eleições multipartidárias (43). Por exemplo, após as eleições da Gâmbia, em 2016, a recusa do presidente Jammeh para aceitar a derrota foi rapidamente confrontada com uma intervenção militar de países vizinhos – forçando-o para o exílio (44). O mesmo parece se aplicar aos golpes militares – o que pode explicar a queda acentuada dos golpes nas últimas décadas (45).

Uma transição gradual para o autoritarismo eleitoral é mais difícil de identificar do que uma clara violação dos padrões democráticos e oferece menos oportunidades para a oposição interna e internacional. Os autocratas eleitorais garantem sua vantagem competitiva por meio de táticas mais sutis, como censurar e assediar os meios de comunicação, restringir a sociedade civil e os partidos políticos e enfraquecer a autonomia dos órgãos de administração eleitoral. Autocratas aspirantes aprendem uns com os outros (46) e, aparentemente, tomam emprestadas táticas consideradas menos arriscadas do que abolir completamente as eleições multipartidárias.

Assim, as literaturas sobre a autocratização, bem como sobre a ascensão global das eleições multipartidárias, sugerem que a atual onda de autocratização se desdobra de maneira mais clandestina e gradual do que seus precedentes históricos.

Isso leva à seguinte pergunta: se a autocratização ocorre de forma mais gradual, isso também reduz a magnitude da mudança? Bermeo sugere que sim. Outros (47) veem com mais pessimismo em livros intitulados, por exemplo, “ Como as democracias morrem ” (Levitsky e Ziblatt) e “ Como a Democracia acaba” (Runciman).(48). No entanto, a literatura recente sobre autocratização também não oferece dados granulares, comparações empíricas sistemáticas sobre esta questão.

Assim, encontramos contribuições e propostas emergentes na literatura existente sobre a autocratização contemporânea. Este artigo procura preencher duas lacunas principais. Primeiro, ele fornece uma conceituação abrangente de autocratização com uma operacionalização acompanhada de alta validade, o que é claramente necessário para fazer futuras descobertas comparáveis. Em segundo lugar, não possuímos uma análise empírica abrangente diagnosticando autocratização contemporânea numa perspectiva histórica: 1) a sua extensão e que os tipos de regimes são mais afetados comparados com ondas anteriores; 2) a natureza de como é promulgada pelos governantes em perspectiva comparativa; e 3) seu ritmo e magnitude de mudança.

O que é e o que não é autocratização?

Assim como com o debate sobre se a democratização deve ser entendida como uma diferença em espécie (países atravessando um limiar qualitativo) (49), ou em graus (movimentos graduais longe de pura ditadura) (50), não são aparentemente entendimentos opostos de autocratização. Três diferentes termos são comumente usados para movimentos de afastamento da democracia: retrocesso, colapso da democracia e autocratização (51).

Sugerimos que é preferível conceituar a autocratização – o antípoda da democratização – como uma questão de grau que pode ocorrer tanto nas democracias como nas autocracias. As democracias podem perder traços democráticos em graus variados sem totalmente deixar de ser democracias e muito antes de se desfazerem. Por exemplo, ainda é uma questão em aberto se o modelo de Orbán da democracia iliberal na Hungria se transmutará em autoritarismo, e os regimes não-democráticos podem ser colocados em um longo espectro que vai desde autocracias fechadas – como a Coréia do Norte ou a Eritréia – para autocracias eleitorais com graus variados de resistência à democracia – como a Nigéria antes das eleições de 2015.

Assim, mesmo que a maioria das autocracias abriguem alguns traços de regime democrático em graus diferentes (por exemplo, um pouco competitivo, mas longe de eleições totalmente livres e justas) e pode perdê-los, como o golpe militar de 1989 no Sudão quando Omar Al-Bashir substituiu uma autocracia eleitoral com uma das piores ditaduras fechadas da África.

A literatura clássica foca o colapso das democracias (52) mesmo que alguns autores tenham identificado uma erosão gradual da democracia no período anterior (53). Transições súbitas dominaram os distanciamentos da democracia nas décadas de 1960 e 1970, tornando este um rótulo adequado para se afastar da democracia na época. No entanto, o conceito de “colapso” é útil apenas para um subconjunto de possíveis episódios de autocratização. Primeiro, ele requer uma abordagem nítida da diferença entre democracia e ditadura para permitir a identificação do ponto de colapso. Isso exclui estudos sobre o enfraquecimento prolongado de instituições democráticas encapsulados pelo autogolpe e a degeneração recorrentes da qualidade das democracias, bem como o afastamento das qualidades democráticas parciais em regimes autoritários eleitorais. Isso é particularmente problemático para o período contemporâneo, quando casos de repentina autocratização – golpes de estado, por exemplo – são raros.

Alguns estudiosos sugeriram ‘retrocesso democrático’ para denotar a diminuição de traços democráticos.

Por exemplo, Bermeo define retrocesso como “debilitação conduzida pelo Estado ou eliminação de qualquer uma das instituições políticas que sustentam uma democracia existente” (54). Waldner e Lust entendem o “backsliding” como uma “deterioração que implica deterioração de qualidades associadas à governança democrática, dentro de qualquer regime ” (55).

Embora estejamos solidários com Waldner e Lust, afastando-se de um enfoque exclusivo nas democracias, achamos o uso do termo “backsliding” problemático por três razões: Primeiro, “backsliding” ou retrocesso democrático, implica um declínio ‘em termos de’ democracia e assim uma extensão conceitual além do espectro do regime democrático estaria limitada ao alongamento conceitual (56).

Do nosso ponto de vista, um país já autocrático não pode sofrer retrocesso “democrático” em uma ditadura mais profunda. Em segundo lugar, o termo sugere que os regimes deslizam “de volta” para onde estavam antes, enquanto na realidade eles podem desenvolver uma nova direção, para uma forma diferente de autoritarismo, por exemplo (57).

Finalmente, “sliding” (“deslizando” em português) soa como um processo involuntário e inconsciente, que não faz justiça às ações conscientes que atores políticos tomam a fim de alterar um regime. O termo simplesmente invoca o tipo errado de noção sobre o processo.

Em terceiro lugar, sugerimos que o conceito primordial, ou superior nos termos de Sartori, é a autocratização (58). Semanticamente, sinaliza que estudamos o oposto da democratização, descrevendo assim “qualquer afastamento da democracia [completa]” (59). Como um conceito abrangente, a autocratização abrange tanto os súbitos colapsos da democracia à maneira de Linz como os processos graduais dentro e fora dos regimes democráticos em que os traços democráticos declinam – resultando em situações menos democráticas, ou mais autocráticas (Figura 1). Essa conceituação nos permite estudar tanto o ritmo quanto os métodos de aproximar um regime de uma ditadura fechada, mantendo a distinção entre recessões democráticas que começam nas democracias, colapsos democráticos e consolidação adicional de regimes já autoritários.

Para fornecer uma abrangente definição de processos de autocratização, usamos o termo recessão democrática para denotar processos de autocratização ocorrendo dentro de democracias, o termo ruptura democrática para quando uma democracia se transforma em uma autocracia, e consolidação autocrática como designação para declínios graduais de traços democráticos em situações já autoritárias.

Figura 1. Autocratização como democratização em sentido inverso.

Operacionalização e dados

A ciência política contemporânea coloca uma forte ênfase na identificação de fatores causais em projetos de pesquisa experimental. No entanto, não podemos atribuir aleatoriamente autocratização nem suas possíveis causas aos países. Quer queiramos ou não, devemos nos basear em dados observacionais para descrever, compreender e explicar um fenômeno como a autocratização. Dando um passo para trás, qualquer análise causal se baseia em uma descrição precisa do resultado: Como reconhecemos um processo de autocratização quando o vemos? Quais são as maneiras mais úteis de decifrar a dinâmica e descrever padrões, de modo a facilitar inferências descritivas?

Embora haja dados relativamente satisfatórios em colapsos repentinos – por exemplo, sobre golpes militares (60) e medidas dicotômicas com foco em transições da democracia à autocracia registrados em conjuntos de dados existentes (61) – nos faltam dados de séries temporais transnacionais, sumariamente diferenciadas, já sistematizadas, sobre vários aspectos dos regimes para detalhar os processos incrementais de autocratização.

Este artigo apresenta uma nova abordagem que identifica os episódios de autocratização – períodos de tempo conectados com um declínio substancial nos traços do regime democrático. Nós usamos dados da V-Dem (62) em 182 países a partir de 1900 até ao final de 2017, ou 18.031 países-anos (63). Para identificar episódios de autocratização, contamos com o Índice de Democracia Eleitoral (EDI, v2x_polyarchy). O EDI capta em que medida os regimes alcançam os requisitos institucionais básicos segundo a famosa conceituação eleitoral de democracia por Dahl como ‘poliarquia’: sufrágio universal, candidatos eleitos em eleições livres e justas, fontes alternativas de informação e liberdade de expressão, assim como liberdade de associação (64). Para os presentes fins, o EDI do V-Dem tem quatro principais vantagens. Primeiro, os dados V-Dem fornecem vasta cobertura temporal e geográfica com dados que remontam a 1900. Em segundo lugar, o EDI reflete quão democrático um regime político é de fato além da mera presença de-jure das instituições políticas. Além disso, tem uma base teórica forte em atributos de regime que Dahl tem identificado como requisitos básicos para um Democracia Eleitoral (65). E por fim, como um índice contínuo de níveis de facto de democracia é sensível aos processos graduais e lentos de autocratização.

O EDI é executado em uma escala contínua de 0 a 1, com valores mais altos indicando uma distribuição mais democrática. Nós operacionalizamos a autocratização como um declínio substancial no EDI (dentro de um ano ou durante um período de tempo conectado). Um declínio é substancial se resultar em queda de 0,1 ou mais no EDI. A escolha do ponto de corte em um índice contínuo é naturalmente arbitrária, mas uma mudança de 10% parece uma escolha razoável e intuitiva pelas seguintes razões.

Este ponto de corte relativamente exigente de 0,1 minimiza o risco de erro de medição direcionar os resultados, uma vez que requer mais de um acordo entre os codificadores V-Dem que quedas ocorreram entre os 40 componentes do EDI para alcançar esta magnitude de diferença na escala EDI (66). O ponto de corte também deve ser alto o suficiente para descartar mudanças inconsequentes, mas baixo o suficiente para capturar as alterações substanciais ainda incrementais que não chegam a um colapso completo. Um exemplo típico seria a série de declínios nas qualidades democráticas na Hungria de 2006 a 2017, somando-se a queda do EDI de 0,11. No apêndice A4, nós demonstramos a robustez das nossas principais descobertas a um ponto de corte mais alto.

Episódios de autocratização têm um começo e um fim. Nós procedemos em duas etapas para identificar esses episódios. Primeiro, identificamos potenciais episódios de autocratização, que são mudanças adversas de regime de qualquer magnitude. Em segundo lugar, excluímos todos os casos que envolvem apenas uma mudança geral menor, portanto, não são realmente casos de autocratização.

Primeiro, um potencial episódio de autocratização começa com um declínio no EDI de 0,01 pontos ou mais, de um ano para o seguinte. Escolhemos esse limiar relativamente baixo para identificar o início dos episódios incrementais de autocratização (67). Em segundo lugar, nós acompanhamos o potencial episódio, desde que haja um declínio contínuo, permitindo que até quatro anos de estagnação temporária (sem nova descida de 0,01 pontos no EDI), a fim de refletir o conceito de processos de movimentos lentos que pode acontecer aos poucos e que começa com um cuidadoso autocrata no leme. O potencial período de autocratização termina quando não há mais declínios no EDI de 0,01 ou mais ao longo de quatro anos, ou se o EDI aumenta em 0,02 pontos ou mais durante um desses anos, uma vez que este último indicaria um potencial episódio de democratização (68).

Segundo, calculamos a magnitude total da mudança do ano anterior ao início de um episódio até o final e registramos como episódios de autocratização manifesta apenas aqueles que somam uma mudança de pelo menos 0,1 (10% da escala total de 0 – 1) no EDI (69).

Essas regras de codificação garantem que os períodos de alguns ajustes e começos no que geralmente é um processo demorado e confuso, sejam contados como um episódio e, ao mesmo tempo, minimizem o risco de que o erro de medição desempenhe um papel na determinação de quando um episódio inicia ou termina. E também demonstra que as principais descobertas deste artigo são robustas para modificações dessas regras de codificação.

Para algumas análises, obviamente, é preciso uma clara distinção entre democracias e autocracias. Seguindo Luhrmann et al. (70), nós definimos países como democracias se eles realizarem eleições multipartidárias livres e justas e de-facto e conseguirem pelo menos um nível mínimo de garantias institucionais capturados pelo EDI (sufrágio universal , candidatos eleitos em eleições multipartidárias, liberdade de associação e fontes alternativas de informação).

Diagnosticando a autocratização de 1900 a 2017

Aqui apresentamos a primeira identificação abrangente dos 217 episódios de autocratização que ocorreram em 109 países de 1900 a 2017 (Tabela A1 no Apêndice), deixando apenas 69 estados não afetados (Quadro A2 no Apêndice) (71). Esta contagem inclui 33 países classificados como autocracias em 2017 como a Coreia do Norte e Angola que parecem ter sido pegos em uma “armadilha da autocracia” e devido ao “efeito piso” nunca tiveram muito possibilidade de se tornar piores. Os 36 “non-autocratizers” restantes são classificados como democracias em 2017. Este grupo consiste principalmente de países com uma longa história democrática, como a Suécia e a Suíça, ou que se democratizaram recentemente, como o Butão e Namíbia. Além disso, sete países experimentaram a autocratização apenas devido à invasão estrangeira durante as duas Guerras Mundiais (72).

Cerca de dois terços dos episódios de autocratização (N = 142, 65%) ocorreram em estados já autoritários. Dignos de nota são os muitos (são 60) episódios de autocratização na África, a maioria dos quais ocorridos em autocracias eleitorais, onde a autocratização dissipou os ganhos democráticos iniciais. Por exemplo, três episódios de autocratização no Sudão (1958-1959; 1969; 1989-1990), seguindo-se golpes militares e deposição de presidentes eleitos em eleições não tão perfeitas.

Cerca de um terço de todos os episódios de autocratização (N = 75) começaram sob um sistema democrático. Quase todos os últimos (N = 60, 80%) levaram o país a se tornar uma autocracia. Isso deve nos dar uma grande pausa sobre o espectro da atual terceira onda de autocratização. Muito poucos episódios de autocratização iniciados em democracias já foram interrompidos antes de os países se tornarem autocracias.

A terceira onda de autocratização é real e põe em perigo as democracias

Huntington manifestamente identificou três ondas de democratização e duas ondas de reversões (73). Nossa nova medida de episódios de autocratização pega essas duas ondas reversas e demonstra que uma terceira onda de autocratização está se desdobrando agora.

Para a delimitação precisa das ondas de reversão – ou ondas de autocratização – nós desviamos ligeiramente abordagem original de Huntington, a fim de refletir as nossas inovações conceituais e metodológicas. Em primeiro lugar, tomar como ponto de partida a democracia no entendimento de Dahl como ‘poliarquia’ (74). Com seus sete (mais tarde reduzidos para seis) requisitos institucionais, é muito mais ambicioso e exigente do que a medida schumpeteriana de Huntington, focada na competição (75). Em segundo lugar, estamos preocupados aqui com afastamentos graduais da democracia. Huntington concentrou-se em seu livro de 1991 sobre as distinções nítidas das transições e colapsos democráticos. Ele fala de uma onda de democratização quando as transições para a democracia como eventos superam os colapsos democráticos (76). Nossa abordagem capta melhor as realidades empíricas – em particular durante as últimas décadas – em que a mudança de regime é tipicamente gradual, lentamente levando a hibridização para o autoritarismo eleitoral, ao invés de súbitas transições dramáticas. As medidas mais sensíveis e granulares que temos à nossa disposição comparadas ao que estava disponível para Huntington, também tornam possível para pegar esses processos dinâmicos em um número maior de países do que Huntington poderia capturar com transições binárias. Portanto, usamos a direção dessas mudanças para delinear ondas de autocratização. Nós definimos como uma onda de autocratização o período de tempo durante o qual o número de países experimentando a democratização declina, enquanto ao mesmo tempo a autocratização afeta mais e mais países (77).

Na Figura 2 a linha cinza tracejada representa o número de países que eram afetados pela democratização a cada ano (78). A linha preta e grossa representa o número de países que passaram por autocratização a cada ano. A linha preta e fina indica quantos destes últimos começaram a ser democracias. Assim, a Figura 2 delineia as três ondas de autocratização: a primeira onda de autocratização ocorreu por volta de 1926-1942 e a segunda 1961-1977. A onda de democratização pós-Guerra Fria já diminuiu no início dos anos 1990 e gradualmente os processos de reversão começaram a se espalhar, começando na Rússia, Armênia e Belarus. Portanto, podemos pela primeira vez mostrar que a terceira onda de autocratização já começou para valer em 1994. Notavelmente, o seu fluxo permaneceu sob o radar da maioria dos cientistas políticos até que Carothers declarou “O Fim do Paradigma da Transição” (“The End of Transition Paradigm”) em seu artigo seminal de 2002 (79). Em 2017, a terceira onda de autocratização dominou com as reversões superando os países que progrediram. Isso não ocorria desde 1940.

Figura 2. As três ondas de autocratização.

As datas para as primeiras duas ondas de reversão aqui apresentados são muito semelhantes aos de Huntington apesar das diferenças conceituais e de medição (primeira onda de reversão 1922-1942; segunda onda de reversão 1960-1975). Havia 32 episódios de autocratização na primeira onda; 62 episódios durante a segunda onda de reversão; e 75 episódios ocorrendo desde o início da terceira onda (80). Uma lista desses episódios é encontrada no Apêndice B.

Uma observação imediatamente se destaca da Figura 2. Considerando que a primeira onda de reversão afeta tanto as democracias como as autocracias e o segundo período de reversão quase só piorou autocracias eleitorais, quase todos os episódios de autocratização contemporâneos afetam democracias. Somos os primeiros a mostrar também esta diferença sistemática. É uma fonte de preocupação, especialmente dada a descoberta relatada acima, de que poucos episódios desse tipo não chegam ao autoritarismo propriamente dito. Ao mesmo tempo, menos autocracias são afetadas pela autocratização, isto é, uma transição de autocracia eleitoral para autocracia fechada. Isto reflete a tendência que, mesmo no espectro dos regimes autoritários, eleições multipartidárias se tornaram a norma (81).

Países da Europa Oriental pós-comunistas respondem por 16 episódios de autocratização, principalmente prolongados, na terceira onda, por exemplo, os processos graduais de autocratização na Rússia, Hungria e Polônia. A terceira onda de reversões pode ainda estar criando efeitos em outros 22 países em 2017. Ao mesmo tempo, a parcela dos países no mundo que são democráticos permanece próxima de seu maior nível – 53%. Até certo ponto, este último explica o primeiro. Quanto mais países democráticos existem, maior a probabilidade de que as democracias sofram retrocessos.

Em suma, uma característica importante da terceira onda de autocratização é inédita: Ela afeta principalmente democracias – e não autocracias eleitorais como no período anterior – e isso ocorre enquanto o nível global da democracia está próximo de um máximo histórico. Portanto, pelo menos por enquanto, a tendência é manifesta, mas menos dramática do que alguns afirmam. Esta observação reitera a descoberta de Brunkert, Kruse e Welzel que, enquanto a centenária tendência democrática passou pelo seu clímax, o processo inverso em curso permanece relativamente suave (82).

Nas democracias: a terceira onda de autocratização tem uma fachada legal

Indiscutivelmente, a perda de traços democráticos em regimes que eram democráticos quando um episódio de autocratização começou importam mais para o estado da democracia no mundo do que a deterioração adicional em regimes já autocráticos. Nesta e na próxima seção, analisamos esses 75 episódios de autocratização de democracias com mais profundidade.

A literatura baseada em casos sugere que os responsáveis pelos processos atuais de autocratização estão usando principalmente meios legais e que a apropriação ilegal de poder se tornou menos frequente. Testamos esta proposição através da distinção entre três tipos diferentes de estratégias de autocratização baseado em como eles abolem ou minam instituições democráticas. Os resultados estão relatados na Figura 3. A análise utiliza dados originais cobrindo todos os episódios de autocratização que afetaram as democracias de 1900 a 2017 (83).

As primeira e segunda ondas de reversão foram completamente dominadas pela forma “clássica” de tática de autocratização de acesso ilegal ao poder, como um golpe militar (39% dos episódios) ou invasão estrangeira (29%), e por autogolpes em que o executivo principal chega ao poder por meios legais, mas de repente abole as principais instituições democráticas como eleições ou parlamentos (32%).

Figura 3. Tipos de autocratização das democracias.

Nota: 28 episódios estão incluídos no período de pré-terceira onda e 47 na terceira onda.

O exemplo paradigmático de um autogolpe é a suspensão da Constituição peruana e do parlamento em 1992 pelo presidente Fujimori (84). Mesmo Hitler chegou ao poder por meios legais e instituições democráticas, com o “Ermächtigungsgesetz” (“Enabling Act” em inglês, “Lei de Habilitação” em português), em 1933 .

A erosão democrática tornou-se a tática comum durante a terceira onda de autocratização. Aqui, os titulares acessam legalmente o poder e gradualmente, mas substancialmente, minam as normas democráticas sem abolir as principais instituições democráticas. Tais processos representam 70% na terceira onda de reversão democrática, com casos proeminentes de tal deterioração gradual na Hungria e na Polônia. Autocratas aspirantes claramente encontraram um novo conjunto de ferramentas para permanecer no poder, e essa notícia se espalhou.

Nas democracias: a terceira onda de autocratização é gradual

Desenvolvemos outra nova métrica para medir a taxa de autocratização de uma maneira informativa: a taxa máxima anual de esgotamento. Essa métrica captura a rapidez com que os traços democráticos diminuem durante um episódio de autocratização em termos de mudanças de um ano para o outro no V-Dem EDI. Usando o máximo nos permite distinguir entre episódios em que um período de declínios graduais se combina com um declínio súbito de traços democráticos e trechos que consistem em declínios graduais apenas. A vantagem da taxa máxima de esgotamento é que um valor alto indica que o episódio englobou uma mudança súbita e radical, enquanto um valor baixo indica um processo de autocratização que foi incremental ao longo do tempo. Para facilitar a interpretação, relatamos os valores da taxa máxima de esgotamento como uma porcentagem de 1 (a pontuação mais alta possível no EDI). Assim, se a mudança máxima no EDI de um ano para o próximo durante um episódio de autocratização for -0,1, a taxa de autocratização correspondente é de 10%.

Por exemplo, o episódio de autocratização na Alemanha de 1930 a 1935 começou com três anos de declínios graduais durante a República de Weimar. No entanto, a principal característica desse episódio foi a ascensão de Hitler ao poder em 1933 e o subsequente colapso repentino do sistema democrático. Isto reflete-se por uma elevada taxa máxima de esgotamento de 26%. Por outro lado, como a Turquia de 2008 a 2017 e Rússia a partir de 1993 a 2017, envolvem alterações só graduais – refletidas por taxas relativamente baixas de esgotamento de 7% (Turquia) e 5% (Rússia). Medidas alternativas de ritmo, como a taxa de esgotamento média, a taxa de esgotamento anual e a taxa de decaimento, não captam completamente a diferença entre esses dois padrões. No entanto, incluímos aqueles como testes de robustez para a análise empírica subsequente (ver discussões mais detalhadas nos Apêndices C e E).

A Figura D.1 no Apêndice D mostra um box comparando a autocratização durante as três ondas de reversão usando essa nova métrica. A taxa de autocratização média durante a primeira e segunda ondas foi de 31% e caiu para 8% na terceira onda. No extremo inferior da escala, com uma taxa de esgotamento máximo de 3,8%, encontramos com o processo autocratização extremamente gradual nas Filipinas de 2001 a 2005, seguido pelo de Vanuatu no período de1988-1996 em 4,3%. Os colapsos mais repentinos ocorreram após a invasão alemã na República Tcheca (55%) e na Holanda (52%) durante a Segunda Guerra Mundial.

A taxa de autocratização de democracias caiu significantemente (r = -0.66, linha tracejada na Figura 4) ao longo do tempo. Ao mesmo tempo, a parcela global de democracias aumentou notavelmente – para estabilizar bem acima de 50% após a virada do século (linha preta cheia). A participação global das democracias está significativamente correlacionada – negativamente e estatisticamente – com a taxa de autocratização. Essa relação se mantém mesmo quando se controla importantes fatores que podem gerar mal-entendidos, como o PIB, o tempo de transição, o nível de democracia e a ocupação estrangeira, bem como os tipos de autocratização relatados na seção anterior. Com base nessas análises de regressão (resultados omitidos aqui, ver Apêndice C), a taxa de autocratização entre democracias está prevista para cair de 35% quando poucos países foram democráticos (15% por exemplo, no início dos anos 1930) para 10% em 2017 quando mais de metade dos países do mundo foram democráticos. Esse achado é robusto para especificações alternativas da taxa de autocratização (Apêndice C), bem como dos episódios autocratização (Apêndice E).

Figura 4. Taxa de tendência global de autocratização nas democracias e participação das democracias

Nota: A taxa de autocratização captura a rapidez com que o Índice de Democracia Eleitoral V-Dem declina no pico do episódio de autocratização em termos de mudanças de um ano para o outro. Valores altos indicam autocratização repentina e valores baixos mais graduais. O eixo x da figura mostra o ano em que o pico da taxa de autocratização ocorreu durante o episódio.

No entanto, uma vez que temos que confiar em dados observacionais e um número relativamente pequeno de casos (75), precisamos reconhecer estes testes empíricos como achados experimentais. Não obstante – como discutido na revisão da literatura – há intuições razoáveis sobre por que um aumento global da democracia deveria ter um efeito amortecedor sobre a taxa de autocratização.

Este desenvolvimento resulta em expectativas opostas para as novas perspectivas da democracia. Por um lado, a autocratização tornou-se mais obscura e, portanto, pode-se suspeitar de menor probabilidade de produzir fatores desencadeadores para a mobilização de forças pró-democráticas. Por outro lado, a autocratização também se tornou menos grave – pelo menos em média nas (antigas) democracias. A Figura 5 ilustra como o efeito da autocratização sobre o nível de democracia mudou ao longo do tempo. O eixo y mostra a queda total de EDI durante um episódio de autocratização e o eixo x a pontuação EDI no ano final de autocratização. Antes de 1994, a autocratização tipicamente resultava nas transições dramáticas para a autocracia fechada com uma pontuação média de EDI de 0,13 no final do episódio. Durante a terceira onda de autocratização, o nível de democracia mediana no final dos episódios de autocratização permanece muito maior, com uma pontuação de 0,45 no EDI. Além disso, o declínio médio total de atributos democráticos durante a terceira onda (- 0,19) é menos do que metade do declínio durante o período de pré-terceira onda (- 0,50). Isso se deve principalmente ao surgimento do fenômeno da erosão democrática (33 de 47 casos, ou 70%) na terceira onda, que não era discernível antes.

Figura 5. As consequências da autocratização no nível da democracia.

As formas repentinas de autocratização – invasões, golpes militares, autogolpes – sempre resultam em um colapso democrático. Mesmo os processos de erosão democrática são mais frequentemente letais para a democracia: 18 (55%) deles resultaram em colapsos democráticos; apenas 5 (15%) processos pararam antes da falência da democracia e 10 (30%) ainda estavam em andamento em 2017 (85).

Conclusão: a terceira onda de autocratização

Este artigo apresenta a primeira análise empírica sistemática da autocratização contemporânea em perspectiva histórica. O artigo, em primeiro lugar, contribui com um novo método para identificar episódios não só repentinos, mas também progressivos de autocratização, fornecendo uma visão geral empírica abrangente da mudança adversa de regime de 1900 até hoje em todo o espectro democracia-autocracia. Essa nova operacionalização aponta o ano de início e do fim dos processos de autocratização, o que facilita uma nova geração de estudos, por exemplo, sobre os impulsionadores do início da autocratização e caminhos sequenciais durante os episódios.

Em segundo lugar, fornecemos evidências de que os declínios contemporâneos da democracia constituem uma terceira onda de autocratização. Uma descoberta chave é que a presente onda de reversão da democracia – que começa a partir de 1993 -, afeta principalmente democracias, ao contrário de ondas anteriores. O que é especialmente preocupante sobre essa tendência é que, historicamente, muito poucos episódios de autocratização iniciados em democracias foram impedidos de transformar países em autocracias.

Além disso, apresentamos uma série de testes descritivos que corroboram as principais afirmações encontradas na extensa literatura, mas que não foram testadas antes com evidências sistematizadas: os autocratizadores contemporâneos usam principalmente estratégias legais e graduais para minar as democracias. Com base em dados originais, mostramos que cerca de 68% de todos os episódios contemporâneos de autocratização iniciados em democracias são liderados por governantes que chegaram ao poder legalmente e tipicamente por eleições democráticas. Por outro lado, durante o período pré-terceira onda, a maioria dos episódios de autocratização incluiu uma tomada de poder ilegal, como um golpe militar. Enquanto os autocratizadores antes da terceira onda tomavam medidas claramente identificáveis, como a criação de uma nova constituição não-democrática ou a dissolução da legislatura, a maioria dos autocratizadores contemporâneos não altera as regras formais. Assim, também o modo como os titulares do poder enfraquecem a democracia tornou-se mais informal e clandestino.

Finalmente, nós concebemos uma nova métrica – a taxa de autocratização – capturando quão rápido regimes perdem sua qualidade democrática de um ano para o outro, medida como uma mudança de porcentagem do maior valor possível de EDI do V-Dem. Podemos então mostrar que a autocratização se tornou muito mais gradual do que antes. Sua taxa máxima declinou de uma média de cerca de 31% no período de pré-terceira onda para cerca de 8% na terceira onda. Essa tendência está fortemente correlacionada com as mudanças na participação global dos regimes democráticos. À medida que a democracia se espalhou pelo mundo nos anos 1990 e 2000, a autocratização tornou-se mais gradual.

Atualmente, a maioria dos regimes – até autocracias – realiza alguma forma de eleições multipartidárias. Movimentos repentinos e ilegais em direção à autocracia tendem a provocar oposições nacionais e internacionais. Os testes que apresentamos sugerem que os autocratizadores contemporâneos aprenderam sua lição e, assim, agora procedem de maneira muito mais lenta e menos perceptível que seus antecessores históricos. Assim, embora a democracia tenha sido indubitavelmente ameaçada, seu poder normativo ainda parece forçar os autocratas aspirantes a jogar um jogo de enganação (ou “faz-de-conta”).

Consequentemente, os estados atingidos pela terceira onda de autocratização permanecem muito mais democráticos que seus primos históricos. Por um lado, isso dá esperança de que a atual onda de autocratização poderia ser mais suave do que a primeira e segunda ondas. Por outro lado, a terceira onda ainda pode estar começando. Ela afetou 22 países em 2017 e mais outros estão no limiar. Para esses países, dois cenários são plausíveis: como a autocratização é mais gradual, os atores democráticos podem permanecer fortes o suficiente para mobilizar a resistência. Isso aconteceu, por exemplo, na Coreia do Sul em 2017, quando protestos em massa forçaram o parlamento a derrubar a presidente, o que reverteu a tendência anterior de autocratização (86). Por outro lado, pequenos passos iniciais em direção à autocracia trouxeram outros países – como a Turquia, a Nicarágua, a Venezuela e a Rússia – em uma vertente escorregadia no espectro do regime autoritário. Pesquisas futuras precisam investigar o que distingue esses dois cenários e como a autocratização pode ser interrompida e revertida. No entanto, uma conclusão é clara: como era prematuro anunciar o “fim da história” em 1992, é prematuro proclamar o “fim da democracia” agora.

NOTAS

1. Ver por exemplo Altman and Perez-Liñan, “Explaining the Erosion of Democracy”; Bermeo, “On Democratic Backsliding”; Cassini and Tomini, “Reversing Regimes and Concepts”; Coppedge, “Eroding Regimes”; Diamond, “Facing Up Democratic Recession”; Haggard and Kaufmann, Dictators and Democrats; Levitsky and Ziblatt, How Democracies Die; Lührmann et al., “State of the World”; Mounk, The People vs. Democracy; Runciman, How Democracy Ends; Snyder, On Tyranny; Tomini and Wagemann, “Varieties of Democratic Breakdown”; Waldner and Lust, “Unwelcome Change.”

2. E.g. Bermeo, “On Democratic Backsliding”; Runciman, How Democracy Ends.

3. Linz, Breakdown of Democratic Regimes.

4. Lührmann et al., “State of the World.”

5. Levitsky and Ziblatt, How Democracies Die; Snyder, On Tyranny.

6. Mechkova, Lührmann, and Lindberg, “How Much Backsliding?”

7. Runciman, How Democracy Ends.

8. Norris, “Is Western Democracy Backsliding?”; Brunkert et al., “Culture-bound Regime Evolution.”

9. Dahl, Polyarchy; Dahl, On Democracy.

10. Huntington, The Third Wave.

11. Fukuyama, The End of History.

12. Svolik, Politics of Authoritarian Rule.

13. Schedler, The Politics of Uncertainty; Diamond, “Thinking about Hybrid Regimes.”

14. Freedom House, Freedom in the World, 2008.

15. Diamond, “The Democratic Rollback”; Freedom House, Freedom in the World, 2008.

16. Merkel, “Are Dictatorships Returning?”; Levitsky and Way, “Myth of Democratic Recession.”

17. Freedom House, Freedom in the World, 2018.

18. Lührmann et al., “State of the World.”

19. Diamond, “Facing Up Democratic Recession”; Levitsky and Ziblatt, How Democracies Die; Kur- lantzick, Democracy in Retreat.

20. Mechkova, Lührmann, and Lindberg, “How Much Backsliding?”

21. Waldner and Lust, “Unwelcome Change,” 14.

22. Bermeo, “On Democratic Backsliding,” 6.

23. Bermeo, “On Democratic Backsliding,” 14; Diamond, “Facing Up Democratic Recession.”

24. Svolik, “Which Democracies will Last?”

25. Mechkova, Lührmann, and Lindberg, “How Much Backsliding?”

26. Coppedge, “Eroding Regimes.”

27. Bermeo, “On Democratic Backsliding,” 10.

28. Levitsky and Ziblatt, How Democracies Die.

29. Bermeo, “On Democratic Backsliding.”

30. Mounk, The People vs. Democracy.

31. Diamond, Facing Up Democratic Recession; Lührmann et al., “State of the World.”

32. E.g. Svolik , “Authoritarian Reversals and Democratic Consolidation”; Bernhard, Nordstrom, and Reenock, “Economic Performance and Democratic Survival”; Ulfelder and Lustik, “Modeling Transitions to Democracy”; Przeworski, Democracy and Development.

33. E.g. Merkel, “Are Dictatorships Returning?”; Erdmann, “Decline of Democracy”; Levitsky and Way, “Myth of Democratic Recession.”

34. Lueders and Lust, “Multiple Measurements of Regime Change.”

35. Autocracias fechadas são tipicamente definidas na literatura como regimes onde o chefe do executivo não se submete de jure a eleições multipartidárias. Portanto, esta categoria inclui monarquias, regimes militares assim como estados com um só partido.

36. Schedler, The Politics of Uncertainty; Levitsky and Way, Competitive Authoritarianism.

37. Zakaria, The Future of Freedom.

38. Lührmann, Tanneberg, and Lindberg, “Regimes of the World.”

39. Norris, “Does the World Agree?”; Hyde, The Pseudo-democrats’ Dilemma.

40. Diamond, “Liberal Democratic Order Crisis.”

41. Schedler, The Politics of Uncertainty.

42. Bunce and Wolchik, “Defeating Dictators”; Kuntz and Thompson, “More than Final Straw.”

43. Kim and Kroeger, “Rewarding Introduction of Multiparty Elections.”

44. See Searcey and Yaya Barry, “As Yahya Jammeh Entered Exile.”

45. Bermeo, “On Democratic Backsliding.”

46. Hall and Ambrosio, “Authoritarian Learning.”

47. Bermeo, “On Democratic Backsliding,” 17.

48. Levitsky and Ziblatt, How Democracies Die; Runciman, How Democracy Ends.

49. See Przeworski, Democracy and Development.

50. See Collier and Adcock, “Democracy and Dichotomies”; Lindberg, Democracy and Elections in Africa, 24–27.

51. Enquanto estes são os termos mais comumente usados é importante notar que outros existem , assim como “democratic erosion” (Coppedge, “Eroding Regimes”), “de-democratization” (Tilly, “Inequality, Democratization, and De-democratization”), “democratic recession” (Diamond, “Facing Up Democratic Recession”) or “closing space” (Carothers and Brechenmacher, “Closing Space”). Para uma lista mais extensa de termos usados neste debate ver Cassani and Tomini “Reversing Regimes and Concepts,” 4.

52. E.g. Linz, Breakdown of Democratic Regimes.

53. Przeworski, Democracy and Development.

54. Bermeo, “On Democratic Backsliding,” 5.

55. Waldner and Lust, “Unwelcome Change,” 5.3.

56. Sartori, “Concept Misinformation in Comparative Politics.”

57. Runciman, How Democracy Ends, 3.

58. Sartori, “Concept Misinformation in Comparative Politics.”

59. Lindberg, Democratization by Elections, 12; Cassani and Tomini (Cassani and Tomini, “Reversing Regimes and Concepts”) definem positivamente autocratização como um “processo de mudança de regime em direção à autocracia que torna a política cada vez mais exclusiva e monopolista e o poder político cada vez mais repressivo e arbitrário”. Essa definição difere da nossa abordagem de pensar negativamente na autocratização – como um afastamento da democracia. Nós preferimos nossa abordagem por dois motivos. Primeiro, está em linha com o entendimento comum da autocracia como não-democracia (e.g. Schedler, The Politics of Uncertainty). Segundo, porque nossa abordagem nos permite entender a autocratização e a democratização como mutuamente exclusivas, o que nos permite operacionalizá-las sem ambigüidade.

60. Powell and Thyne, “Global Instances of Coups.”

61. E.g. Bernhard, Nordstrom, and Reenock, “Economic Performance and Democratic Survival”; Haggard and Kaufman, Dictators and Democrats.

62. Coppedge et al., “V-Dem Dataset v8.”

63. Aproximadamente metade dos indicadores na base de dados do V-Dem são baseados em informação de fatos de documentos oficiais como constituições. O restante consiste em avaliações de especialistas em tópicos como a qualidade das eleições e o cumprimento de fato dos padrões constitucionais. Em tais questões, normalmente cinco especialistas fornecem classificações para o país, a área temática e o período de tempo para o qual são especialistas (Coppedge et al., “V-Dem Codebook v8”).

64. Dahl, Polyarchy; Dahl, On Democracy; Teorell et al., “Measuring Polyarchy Across the Globe.”

65. Lührmann et al. (Lührmann et al., “State of the World”) usa o índice de Democracia Liberal V-Dem para identificar declínios democráticos. A vantagem dessa estratégia alternativa é que ela fornece uma ferramenta de alerta antecipado, porque os aspectos liberais da democracia muitas vezes são os primeiros a se desgastar (ver Coppedge, “Eroding Regimes”). No entanto, o objetivo deste artigo é diferente. A saber, queremos fornecer um dispositivo heurístico, o que facilita a análise de questões como as restrições liberais influenciam a probabilidade de autocratização. Portanto, precisamos operacionalizar a autocratização de uma forma que seja parcimoniosa e não inclua aspectos liberais da democracia.

66. O V-Dem agrega as avaliações de especialistas usando o modelo de IRT bayesiano (Pemstein et al., “The V-Dem Measurement Model”; Marquardt and Pemstein, “IRT Models”).

67. Verificações de robustez com diferentes limiares produzem resultados semelhantes na análise de regressão (ver Appendix A4).

68. Um limiar mais baixo de 0,01 para episódios terminais levariam, por exemplo, ao episódio na Rússia a limitar-se aos anos 2011-2017, embora já nos anos desde 1993 tenham registado grandes decréscimos cumulativos (−0,19).

69. Uma opção alternativa teria sido usar uma mudança média de cinco anos no EDI como, por exemplo, Coppedge (Coppedge, “Eroding Regimes”). No entanto, nossa estratégia nos dá um ponto inicial ou final de processos mais graduais.

70. Lührmann, Tannenberg, and Lindberg, “Regimes of the World.”

71. Essa contagem inclui apenas países que ainda existem em 2017.

72. Albânia, Romênia, Bélgica, Dinamarca, França, Holanda e Noruega.

73. Huntington, The Third Wave.

74. Dahl, Polyarchy; Dahl, Democracy and its Critics.

75. Ver Doorenspleet (“Reassessing the Three Waves”) para um ponto similar.

76. Huntington, The Third Wave, 16.

77. É um tanto ambíguo delinear com precisão um ponto de início e fim de ondas de autocratização e democratização todos os anos, dado que em quase todos os anos há um número de países mudando em ambos os sentidos. Assim, as datas que sugerimos aqui devem ser entendidas para delinear a parte principal de uma onda. Mas a questão sobre se uma onda começou exatamente neste ano ou não é uma questão crítica em uma perspectiva de um século. Identificamos uma onda de autocratização começando quando o número de episódios de democratização começa a diminuir ao mesmo tempo em que os episódios de autocratização aumentam por dois anos seguidos. Termina quando os episódios de autocratização diminuem em número e os episódios de democratização aumentam nos próximos quatro anos.

78. Seguindo Doorenspleet (“Reassessing the Three Waves”) Nós focamos nossa análise no número de países. No Apêndice D, mostramos que as três ondas reversas também se manifestam quando se baseia a análise gráfica na participação dos países. Episódios de democratização são baseados em Lindberg et al. (“Successful and Failed Democratization”).

79. Carothers, “End of the Transition Paradigm.”

80. 48 casos ocorreram entre as ondas.

81. Schedler, The Politics of Uncertainty; Levitsky and Way, Competitive Authoritarianism.

82. Brunkert et al. baseia sua análise nos dados do V-Dem, mas operacionalizam as tendências democráticas de forma diferente, isto é, enfocando uma combinação de aspectos liberais, eleitorais e participativos. Conseqüentemente, suas descobertas em detalhes diferem das nossas. Por exemplo, eles argumentam que o clímax da democracia foi alcançado em cerca de 2000, quando 21% da população mundial vivia no que eles chamam de “democracias plenas”. Brunkert et al., “Culture-bound Regime Evolution,” 7.

83. O processo de codificação procedeu em três etapas: Primeiro, usamos os dados do V-Dem para identificar se a nomeação do Chefe do Executivo envolvia ou não a força (v2expathhs/v2expathhg; Cop-pedge et al., “V-Dem Codebook v8”). Em segundo lugar, tendo em conta esta informação, um assistente de pesquisa codificou as quatro sub-categorias com base em referências padrão, como Nohlen e Stöver (eleições na Europa), and Lentz (Encyclopedia of Heads of states), bem como literatura específica do caso. Terceiro, verificamos as escolhas de codificação em particular no que diz respeito a casos limítrofes. A Tabela A1 no apêndice mostra a categorização de episódios individuais.

84. Lentz, Heads of States 1945 Through 1992, 633; Levitsky and Ziblatt, “How Democracies Die.”

85. Os cinco episódios a seguir pararam antes do colapso: Bolívia (2015), Equador (2010), Nicarágua (1999), Coréia do Sul (2014) e Vanuatu (1996). Brasil, Croacia, Republica Dominicana, Gana, Hungria, Lesotho, Moldovia, Nigeria, Polônia e Espanha estavam em andamento em 2017.

86. Shin and Moon, “South Korea after Impeachment,” 130.

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