Itinerário 2 – Módulo 8

Este Itinerário 2 é composto pelas perguntas usuais que questionam a democracia. O objetivo é responder às objeções comuns à democracia que permanecem sendo repetidas ad nauseam por autocratas e analfabetos democráticos. O programa completo é composto por trinta questões. Neste Módulo 8 você poderá ver as respostas das questões 8 e 9.

Atenção. Você pode não concordar com as respostas abaixo. Todas as respostas para as perguntas deste itinerário expressam, necessariamente, visões ou interpretações particulares. Caso discorde de algumas afirmações, deixe seu comentário ao final.

8 – Como mobilizar e organizar a ação coletiva sem líderes destacados e sem um mínimo de hierarquia? Isso não parece uma coisa teórica demais, sem base na realidade?

Em primeiro lugar é preciso entender qual a relação desta pergunta com a democracia. À primeira vista a democracia parece não ter nada a ver diretamente com liderança e hierarquia. E liderança também parece não ter nada a ver diretamente com hierarquia.

A democracia é política, quer dizer, é modo de regulação de conflitos e não pode ser confundida com padrões de organização e com comportamentos condicionados por esses padrões.

No entanto, como a democracia pressupõe sempre algum grau de auto-organização da sociedade, pode-se supor que coletividades que dependem muito de lideranças destacadas para se conduzir têm baixos graus de auto-organização, esperando sempre dos líderes a indicação do caminho a seguir.

Uma sociedade com grau muito baixo de auto-organização, onde as pessoas não tomam qualquer iniciativa, não pode suportar a democracia. Tem que ser conduzida por um líder que acabará se comportando como senhor: o que é, por definição, autocracia, não democracia.

Ocorre que o grau de auto-organização da sociedade depende dos seus padrões de organização predominantes, ou seja, da topologia da sua rede social. Sociedades muito hierárquicas (centralizadas) exigem (poucos) líderes destacados, o que não se verifica em sociedades mais em rede (com padrões de organização mais distribuídos). Não é que, em rede mais distribuída do que centralizada, não existirão líderes e sim que eles serão mais numerosos e temporários, emergindo da dinâmica social, sendo substituídos por outros líderes. Um líder destacado, que se prorroga indefinidamente no tempo, que lidera em todas as circunstâncias, que não é substituído por outros líderes, só é possível em ambientes sociais mais centralizados do que distribuídos.

Para entender a diferença entre centralizado, descentralizado e distribuído é bom examinar os famosos diagramas de Paul Baran (1964):

Ora quanto menos líderes surgirem, pior para a democracia, mais dificuldade haverá de democratização da sociedade e, por decorrência, de controle da sociedade sobre as atividades do Estado.

A democracia não tem problemas com líderes e sim com a falta de líderes. Quanto menos líderes, menos capacidade haverá de auto-organização, mais dependência haverá de um Grande Irmão, de um Führer, de um condutor de rebanhos, de um senhor. Para entender tudo isso é necessário perceber que existe um condicionamento recíproco entre modos (políticos) de regulação e padrões (sociais) de organização. O que exige uma abordagem social da democracia.

UMA ABORDAGEM SOCIAL DA DEMOCRACIA

Por que e como foi inventada a democracia? Até hoje os estudiosos têm imensa dificuldade de decifrar o que ocorreu. Não estabelecem as conexões necessárias e não reconhecem os padrões sem os quais não se pode desvendar o sentido das configurações coletivas que se constelaram. Não há, portanto, uma compreensão propriamente social do surgimento da democracia. Ou, quando há, é uma lástima: tomam por social aquilo que diz respeito às condições de vida (em geral de sobrevivência) das populações e não à fenomenologia da interação, quer dizer, o fluxo da convivência social.

Alguns pensadores do século passado conseguiram captar o “gene” (ou o meme) original democrático – como John Dewey, Hannah Arendt e Humberto Maturana (entre outros; poder-se-ia citar também Claude Lefort, Cornelius Castoriadis e Amartya Sen) – mas a maioria dos teóricos da política ficou presa aos esquemas explicativos da modernidade que replicavam visões em que o social era uma espécie de epifenômeno (na verdade, para a maioria deles só existiam os indivíduos, o mercado e o Estado) e, assim, não conseguiram perceber os condicionamentos recíprocos entre o padrão (social) de organização e modo (político) de regulação.

Ora, do ponto de vista social, a democracia é um erro no script da Matrix. Não se explica de outra maneira. Não era necessária. Nem foi o resultado de qualquer “evolução” social. Não surgiu dos interesses privatizantes de alguma corporação. Surgiu em uma cidade no mesmo momento em que nela se conformou um espaço público.

Os teóricos políticos do século passado, porém, não podiam se conformar com isso. Viciados na ideia (ou no esquema explicativo) de determinação de uma superestrutura por uma estrutura (um velho vício de raiz iluminista difundido pelo marxismo), queriam sempre surpreender o que está debaixo do pano, queriam desvendar a máquina que estaria por trás do que acontece na vida fenomênica. Destarte, por não encontrarem o mecanismo oculto (em geral econômico, como acreditam) que estaria determinando uma nova criação política, suas análises não foram (e ainda não são, posto que esses teóricos remanescem no século atual) capazes de explicar os problemas atuais da democracia.

Os analistas políticos, em sua maioria, pensam a partir de um conjunto de pressupostos, raramente discutidos porquanto tomados como verdades evidentes por si mesmas: o primeiro deles é que o ser humano é inerentemente competitivo (postulado largamente falsificado pelas evidências e, portanto, impossível de ser sustentado pela ciência, tendo status semelhante ao de uma crença de natureza religiosa) e faz escolhas racionais tentando maximizar a satisfação de seus interesses egotistas (quando todas as evidências apontam que na raiz da ação dos humanos – e até dos mamíferos em geral – está mais uma emotional motivation do que uma rational choice); o segundo é que sem líderes destacados não se pode mobilizar e organizar a ação coletiva (o que vem sendo refutado fartamente pelos fatos: sobretudo pelos aglomeramentos, enxameamentos e amassamentos que vêm ocorrendo com cada vez mais frequência em sociedades altamente conectadas); e o terceiro é que nada pode funcionar sem um mínimo de hierarquia (idem, do contrário não estaríamos assistindo a profusão de redes mais distribuídas do que centralizadas).

Além disso, os analistas políticos, de maneira geral, baseiam suas análises no suposto de que o conteúdo (do que flui) é relevante para explicar a “realidade” (o que acontece), confundindo informação (mensagem transmitida-recebida) com comunicação (acoplamento estrutural), longe de perceber que o comportamento coletivo é função da fenomenologia da interação (estando os fenômenos interativos, por sua vez, na dependência não de conteúdos e sim do padrão de organização: basicamente, dos graus de distribuição e conectividade da rede social).

Quando é que tudo muda nas análises da democracia? Quando descobrimos que movimentos de desconstituição de autocracia (que são a democracia propriamente dita, ou seja, os processos de democratização) são acompanhados por movimentos de desconstituição de hierarquia.

A democracia pode se democratizar em redes com alto grau de distribuição (e, consequentemente, com altos graus de conectividade e interatividade). Dizendo de modo mais preciso: os processos de democratização tenderão a ter continuidade na medida em que as sociosferas onde ocorrem forem adquirindo uma topologia mais distribuída do que centralizada.

Porque a democracia é uma espécie de “metabolismo” da rede social, cujo “corpo”, a estrutura, o hardware, é dado pelo padrão de organização. Mas esse “metabolismo”, essa dinâmica do modo de regulação, não é uma imanência, não emerge automaticamente da estrutura, em função do seu padrão de organização. Democratização (do modo de regulação) e distribuição (da rede) acontecem ao mesmo tempo, ou melhor, são fenômenos acompanhantes, sinergicamente acompanhados um do outro, mas não causados um pelo outro.

O padrão de organização condiciona possibilidades. Quanto mais centralizada for a topologia da rede, menos chance terá o processo de democratização de prosseguir. Mas mesmo em padrões mais distribuídos do que centralizados, ainda assim é necessário que haja ação política para instaurar modos de regulação crescentemente democráticos. Ações políticas democratizantes, entretanto – eis o ponto – ou serão acompanhadas por mudanças estruturais que tornem a rede mais distribuída ou terão menos chances de prosseguir (e de perdurar).

Não que o padrão de organização, por si só, sem ação política, seja capaz de gerar um determinado modo de regulação, mas topologias mais centralizadas do que distribuídas se sintonizam com dinâmicas mais autocráticas do que democráticas. O exemplo clássico, entre nós, foi a chamada Democracia Corinthiana, aquele movimento surgido na década de 1980 no Corinthians, liderado por Sócrates, Wladimir, Casagrande e Zenon. A Democracia Corinthiana pôde ser instalada, pela ação política de seus agentes, mas não pôde perdurar na medida em que o clube (Corinthians) tinha uma topologia mais centralizada do que distribuída.

Ora, tornar a rede mais distribuída significa, exatamente, desconstituir hierarquia. Assim como a democracia pode ser tomada, no sentido “forte” do conceito, como movimento de desconstituição de autocracia, as redes distribuídas podem ser tomadas como movimentos de desconstituição de hierarquia, sendo que esses processos estão ligados, não por causalidade direta nem automática e sim por condicionamentos recíprocos.

Pode-se dizer que tanto a expansão da liberdade quanto a incidência da cooperação (que ocorre na medida em que a rede se torna mais distribuída) são atributos do modo como os seres humanos se organizam (e nada mais). Mas não há uma fórmula organizativa capaz de produzir automaticamente liberdade sem política. É o processo político de desconstituir autocracia que amplia os graus de liberdade. E é o processo de netweaving, de desconstituir hierarquia, que amplia a cooperação.

Não há nada teórico demais aqui, no sentido pejorativo em que a palavra ‘teórico’ e aplicada por pessoas que têm pouca intimidade com o pensamento filosófico ou científico, para dizer que é uma coisa “sem base na realidade”. Não! É tudo muito concreto. Basta não querer mandar nos outros para que a cooperação brote, para que a multiliderança emerja, ou seja, para que não tenhamos poucos líderes conduzindo tudo, para que não organizemos as coisas segundo padrões centralizados, baseados em comando-e-controle.

 


 

9 – Os seres humanos, abandonados à sua própria sorte, sem uma direção política capaz de conduzi-los, não acabarão entrando em luta uns contra os outros, instaurando um verdadeiro caos social?

Esta pergunta vai na mesma linha da anterior do presente Itinerário. Na verdade, como a anterior (sobre a necessidade da hierarquia e da liderança), não é uma pergunta diretamente sobre a democracia e sim sobre os seus pressupostos. Ela repete a convicção de Thomas Hobbes (1651), em O Leviatã, de que abandonados à sua própria sorte, sem um poder acima deles que os domestique, os homens se engalfinhariam numa guerra de todos contra todos.

No famoso capítulo XIII do Leviatã, Hobbes (1651) decreta que “os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de intimidar a todos”. É claro que ele não está falando apenas de política, mas também revelando os pressupostos antropológico-sociais que condicionam sua maneira de ver a política. Segundo ele, “na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória” – ou seja, essas manifestações de egoísmo não seriam culturais, não emanariam da forma como a sociedade se organiza, mas intrínsecas. Essa inclinação “genética” para o mal explicaria por que, “durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de mantê-los todos em temor respeitoso, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida… [já que] a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há garantia do contrário. Todo tempo restante é de paz”.

Mas, segundo Hobbes, “tudo aquilo que se infere de um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, infere-se também do tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida pela sua própria força e pela sua própria invenção. Em uma tal condição [de falta de um poder que domestique ou apazigue os homens]… não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um medo contínuo e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, miserável, sórdida, brutal e curta”.

Hobbes, portanto, lança o fundamento para a fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin segundo a qual a política é uma continuação da guerra por outros meios.

Ora, não há nenhuma evidência (científica) de que as coisas são assim. Se fossem, os Homo Sapiens – caminhando há pelo menos 150 mil anos sobre a Terra – não teriam conseguido sobreviver, na maior parte (na verdade, quase a totalidade) do tempo sem um poder instituído acima deles, um Estado ou equivalente.

Aceitar essa visão significa admitir que o ser humano é inerentemente (ou “por natureza”) competitivo. Mas as evidências disponíveis indicam o contrário. Os seres humanos conseguiram perdurar porque colaboraram, se associaram para contender com problemas comuns. Aliás, nem a linguagem (ou o linguajear e o conversar) teria surgido sem colaboração. Ademais, há muitas evidências de que os seres humanos primitivos compartilharam alimentos, o que é uma forma de colaboração.

O ser humano competitivo surge quando se erigem padrões hierárquicos de organização, onde a saída única está acima (como os caranguejos numa lata: se o fluxo foi verticalizado, cada indivíduo pisa nos demais, que estão acima dele, para subir). É o padrão de organização social que impõe tal comportamento, não alguma coisa que seja inerente ao ser humano. Estamos tratando aqui da cultura patriarcal.

APÊNDICE

Para entender o que estamos chamando de cultura patriarcal é fundamental ler o texto CULTURA PATRIARCAL que contém excertos (as cinco primeiras seções do primeiro capítulo) do livro de Humberto Maturana e Gerda Verden-Zoller (1993) intitulado Amar e Brincar: Fundamentos esquecidos do humano (traduzido e publicado no Brasil pela Palas Athena Editora, São Paulo: 2009).

Nota preliminar

O termo “matrístico” é usado aqui com o propósito de conotar uma situação cultural na qual a mulher tem uma presença mística, que implica a coerência sistêmica acolhedora e liberadora do maternal fora do autoritário e do hierárquico. A palavra “matrístico”, portanto, é o contrário de “matriarcal”, que significa o mesmo que o termo “patriarcal”, numa cultura na qual as mulheres têm o papel dominante. Em outras palavras, a expressão “matrística” é aqui usada intencionalmente, para designar uma cultura na qual homens e mulheres podem participar de um modo de vida centrado em uma cooperação não-hierárquica. Tal ocorre precisamente porque a figura feminina representa a consciência não-hierárquica do mundo natural a que nós, seres humanos, pertencemos, numa relação de participação e confiança, e não de controle e autoridade, e na qual a vida cotidiana é vivida numa coerência não-hierárquica com todos os seres vivos, mesmo na relação predador-presa.

1 – O QUE É UMA CULTURA?

Nós, humanos, surgimos na história da família dos primatas bípedes à qual pertencemos quando o linguajear – como maneira de conviver em coordenações de coordenações comportamentais consensuais – deixou de ser um fenômeno ocasional. Ao conservar-se, geração após geração, num grupo humano, ele se tornou parte central da maneira de viver que definiu dali por diante a nossa linhagem. Ou seja – e dito de modo mais preciso -, penso que a linhagem a que pertencemos como seres humanos surgiu quando a prática da convivência em coordenações de coordenações comportamentais consensuais – que constitui o linguajear – passou a ser conservada de maneira transgeracional pelas formas juvenis desse grupo de primatas, ao ser aprendida, geração após geração, como parte da prática cotidiana de convívio.

Além disso, penso que, ao surgir como um modo de operar na convivência, o linguajear apareceu necessariamente entrelaçado com o emocionar. Constituiu-se então de fato o viver na linguagem, a convivência em coordenações de coordenações de ações e emoções que chamo de conversar (Maturana, 1988). Por isso penso que, num sentido estrito, o humano surgiu quando nossos ancestrais começaram a viver no conversar como uma maneira cotidiana de vida que se conservou, geração após geração, pela aprendizagem dos filhos.

Também penso que, ao aparecer o humano – na conservação transgeracional do viver no conversar -, todas as atividades humanas surgiram como conversações (redes de coordenações de coordenações comportamentais consensuais entrelaçadas com o emocionar). Portanto, todo o viver humano consiste na convivência em conversações e redes de conversações. Em outras palavras, digo que o que nos constitui como seres humanos é nossa existência no conversar.

Todas as atividades e afazeres humanos ocorrem como conversações e redes de conversações. Aquilo que um observador diz que um Homo sapiens faz fora do conversar não é uma atividade ou um afazer tipicamente humano. Assim, caçar, pescar, guardar um rebanho, cuidar das crianças, a veneração, a construção de casas, a fabricação de tijolos, a medicina… como atividades humanas, são diferentes classes de conversações. Consistem em distintas redes de coordenações de coordenações consensuais de ações e emoções.

Na história da humanidade, as emoções preexistem à linguagem, porque como modos distintos de mover-se na relação são constitutivas do animal. Cada vez que distinguimos uma emoção em nós mesmos ou em um animal, fazemos uma apreciação das ações possíveis desse ser. As diversas palavras que usamos para referir-nos a distintas emoções denominam, respectivamente, os domínios de ações em que nós ou os outros animais nos movemos ou podemos mover-nos.

Assim, ao falar de amor, medo, vergonha, inveja, nojo… conotamos domínios de ações diferentes, e advogamos que cada um deles – animal ou pessoa – só pode fazer certas coisas e não outras. Com efeito, sustento que a emoção define a ação. Falando num sentido biológico estrito, o que conotamos ao falar de emoções são distintas disposições corporais dinâmicas que especificam, a cada instante, que espécie de ação é um determinado movimento ou uma certa conduta. Nessa ordem de ideias, mantenho que é a emoção sob a qual ocorre ou se recebe um comportamento ou um gesto que faz deles uma ação ou outra; um convite ou uma ameaça, por exemplo.

Daí se segue que, se quisermos compreender o que acontece em qualquer conversação, é necessário identificar a emoção que especifica o domínio de ações no qual ocorrem as coordenações de coordenações de ações que tal conversação implica. Portanto, para entender o que acontece numa conversação, é preciso prestar atenção ao entrelaçamento do emocionar e do linguajear nela implicado.

Além disso, temos de fazê-lo percebendo que o linguajear ocorre, a cada instante, como parte de uma conversação em progresso, ou surge sobre um emocionar já presente. Como resultado, o significado das palavras – isto é, as coordenações de ações e emoções que elas implicam como elementos, no fluxo do conversar a que pertencem – muda com o fluir do emocionar. E vice-versa: o fluxo do emocionar muda com o fluir das coordenações de ações. Portanto, ao mudar o significado das palavras modifica-se o fluxo do emocionar.

Por causa do contínuo entrelaçamento do linguajear e do emocionar que implica o conversar, as conversações recorrentes estabilizam o emocionar que elas implicam. Ao mesmo tempo, devido a esse mesmo entrelaçamento do linguajear com o emocionar, mudanças nas circunstâncias do viver que modificam o conversar implicam alterações no fluir do emocionar, tanto quanto no fluxo das coordenações de ações daqueles que participam dessas conversações.

Pois bem: o que é uma cultura, segundo essa perspectiva?

Sustento que aquilo que conotamos na vida cotidiana, quando falamos de cultura ou de assuntos culturais, é uma rede fechada de conversações que constitui e define uma maneira de convivência humana como uma rede de coordenações de emoções e ações. Esta se realiza como uma configuração especial de entrelaçamento do atuar com o emocionar da gente que vive essa cultura. Desse modo, uma cultura é, constitutivamente, um sistema conservador fechado, que gera seus membros à medida que eles a realizam por meio de sua participação nas conversações que a constituem e definem. Daí se segue, também, que nenhuma ação e emoção particulares definem uma cultura, porque esta, como rede de conversações, é uma configuração de coordenações de ações e emoções.

Por fim, de tudo isso resulta que diferentes culturas são redes distintas e fechadas de conversações, que realizam outras tantas maneiras diversas de viver humano como variadas configurações de entrelaçamento do linguajear com o emocionar. Também se segue que uma mudança cultural é uma alteração na configuração do atuar e do emocionar dos membros de uma cultura. Como tal, ela ocorre como uma modificação na rede fechada de conversações que originalmente definia a cultura que se modifica.

Deveria ser aparente, pelo que acabo de dizer, que as bordas de uma cultura, como modo de vida, são operacionais. Surgem com seu estabelecimento. Ao mesmo tempo, deveria ser também aparente que a pertença a uma cultura é uma condição operacional, não uma condição constitutiva ou propriedade intrínseca dos seres humanos que a realizam. Qualquer ser humano pode pertencer a diferentes culturas em diversos momentos do seu viver, segundo as conversações das quais ele participa nesses momentos.

2 – MUDANÇA CULTURAL

Se uma cultura, como modo humano de vida, é uma rede fechada de conversações, ela surge logo que uma comunidade humana começa a conservar uma rede especial de conversações como a maneira de viver dessa comunidade. Por outro lado, desaparece ou muda quando tal rede de conversações deixa de ser preservada.

Dito de outra forma: uma cultura – na qualidade de rede particular de conversações – é uma configuração especial de coordenações de coordenações de ações e emoções (um entrelaçamento específico do linguajear com o emocionar). Ela surge quando uma linguagem humana começa a conservar, geração após geração, uma nova rede de coordenações de coordenações de ações e emoções como sua maneira própria de viver. E desaparece ou se modifica quando a rede de conversações que a constitui deixa de se conservar. Assim, para entender a mudança cultural devemos ser capazes de caracterizar a rede fechada de conversações que – como prática cotidiana de coordenações de ações e emoções entre os membros de uma comunidade específica – constituem a cultura que vive tal comunidade. Devemos também reconhecer as condições de mudança emocional sob as quais as coordenações de ações de uma comunidade podem se modificar, de modo a que surja nela uma nova cultura.

3 – CULTURA PATRIARCAL E CULTURA MATRÍSTICA

Considerarei agora dois casos específicos. Um é a cultura básica na qual nós, humanos ocidentais modernos, estamos imersos – a cultura patriarcal europeia. O outro é a cultura que, sabemos agora (Gimbutas, 1982 e 1991), a precedeu na Europa e que chamaremos de cultura matrística. Essas duas culturas constituem dois modos diferentes de viver as relações humanas. Segundo foi dito antes, as redes de conversação que as caracterizam realizam duas configurações de coordenações de coordenações de ações e emoções distintas, que abrangem todas as dimensões desse viver.

A seguir, descreverei essas duas culturas em termos bem mais coloquiais. Falarei do modo diferente de operar na vida cotidiana de seus membros no âmbito das relações humanas. Mas antes quero fazer algumas considerações sobre a vida cotidiana.

Penso que a história da humanidade seguiu e segue um curso determinado pelas emoções e, em particular, pelos desejos e preferências. São estes que, em qualquer momento, determinam o que fazemos ou deixamos de fazer, e não a disponibilidade do que hoje conotamos ao falar de recursos naturais ou oportunidades econômicas, os quais tratamos como condições do mundo cuja existência seria independente do nosso fazer. Nossos desejos e preferências surgem em nós a cada instante, no entrelaçamento de nossa biologia com nossa cultura e determinam, a cada momento, nossas ações. São eles, portanto, que definem, nesses instantes, o que constitui um recurso, o que é uma possibilidade ou aquilo que vemos como uma oportunidade.

Além disso, sustento que sempre agimos segundo nossos desejos, mesmo quando parece que atuamos contra algo ou forçados pelas circunstâncias; fazemos sempre o que queremos, seja de modo direto, porque gostamos de fazê-lo, ou indiretamente, porque queremos as consequências de nossas ações, mesmo que estas não nos agradem. Afirmo, ademais, que se não compreendermos isso não poderemos entender o nosso ser cultural. Se não compreendermos que nossas emoções constituem e guiam nossas ações na vida, não teremos elementos conceituais para entender a participação de nossas emoções no que fazemos como membros de uma cultura e, consequentemente, o curso de nossas ações nela. Também afirmo, por fim, que se não entendermos que o curso das ações humanas segue o das emoções, não poderemos compreender a trajetória da história da humanidade.

Caracterizemos agora as culturas patriarcal e matrística, em termos das conversações fundamentais que as constituem, com base em como estas aparecem no que fazemos em nossa vida cotidiana.

3.1 – Cultura patriarcal

Os aspectos puramente patriarcais da maneira de viver da cultura patriarcal europeia – à qual pertence grande parte da humanidade moderna, e que doravante chamarei de cultura patriarcal – constituem uma rede fechada de conversações. Esta se caracteriza pelas coordenações de ações e emoções que fazem de nossa vida cotidiana um modo de coexistência que valoriza a guerra, a competição, a luta, as hierarquias, a autoridade, o poder, a procriação, o crescimento, a apropriação de recursos e a justificação racional do controle e da dominação dos outros por meio da apropriação da verdade.

Assim, em nossa cultura patriarcal falamos de lutar contra a pobreza e o abuso, quando queremos corrigir o que chamamos de injustiças sociais; ou de combater a contaminação, quando falamos de limpar o meio ambiente; ou de enfrentar a agressão da natureza, quando nos encontramos diante de um fenômeno natural que constitui para nós um desastre; enfim, vivemos como se todos os nossos atos requeressem o uso da força, e como se cada ocasião para agir fosse um desafio.

Em nossa cultura patriarcal, vivemos na desconfiança e buscamos certezas em relação ao controle do mundo natural, dos outros seres humanos e de nós mesmos. Falamos continuamente em controlar nossa conduta e emoções. E fazemos muitas coisas para dominar a natureza ou o comportamento dos outros, com a intenção de neutralizar o que chamamos de forças antissociais e naturais destrutivas, que surgem de sua autonomia.

Em nossa cultura patriarcal, não aceitamos os desacordos como situações legítimas, que constituem pontos de partida para uma ação combinada diante de um propósito comum. Devemos convencer e corrigir uns aos outros. E somente toleramos o diferente confiando em que eventual- mente poderemos levar o outro ao bom caminho – que é o nosso ou até que possamos eliminá-lo, sob a justificativa de que está equivocado.

Em nossa cultura patriarcal, vivemos na apropriação e agimos como se fosse legítimo estabelecer, pela força, limites que restringem a mobilidade dos outros em certas áreas de ação às quais eles tinham livre acesso antes de nossa apropriação. Além do mais, fazemos isso enquanto retemos para nós o privilégio de mover-nos livremente nessas áreas, justificando nossa apropriação delas por meio de argumentos fundados em princípios e verdades das quais também nos havíamos apropriado. Assim, falamos de recursos naturais, numa ação que nos torna insensíveis à negação do outro implícita em nosso desejo de apropriação.

Em nossa cultura patriarcal, repito, vivemos na desconfiança da autonomia dos outros. Apropriamo-nos o tempo todo do direito de decidir o que é ou não legítimo para eles, no contínuo propósito de controlar suas vidas. Em nossa cultura patriarcal, vivemos na hierarquia, que exige obediência. Afirmamos que uma coexistência ordenada requer autoridade e subordinação, superioridade e inferioridade, poder e debilidade ou submissão. E estamos sempre prontos para tratar todas as relações, humanas ou não, nesses termos. Assim, justificamos a competição, isto é, o encontro na negação mútua como a maneira de estabelecer a hierarquia dos privilégios, sob a afirmação de que a competição promove o progresso social, ao permitir que o melhor apareça e prospere.

Em nossa cultura patriarcal, estamos sempre prontos a tratar os desacordos como disputas ou lutas. Vemos os argumentos como armas, e descrevemos uma relação harmônica como pacífica, ou seja, como uma ausência de guerra – como se a guerra fosse a atividade humana mais fundamental.

3.2 – Cultura matrística

A julgar pelos restos arqueológicos encontrados na área do Danúbio, nos Bálcãs e no Egeu (Gimbutas, 1982), a cultura matrística pré-patriarcal europeia deve ter sido definida por uma rede de conversações completamente diferente da patriarcal. Não temos acesso direto a tal cultura. Penso, porém, que a rede de conversações que a constituiu pode ser reconstruída pelo que se revela na vida cotidiana daqueles povos que ainda a vivem, e pelas conversações não-patriarcais presentes nas malhas das redes de conversação patriarcais que constituem nossa cultura patriarcal de hoje.

Assim, acredito que devemos deduzir, com base nos restos arqueológicos acima mencionados, que os povos que viviam na Europa entre sete e cinco mil anos antes de Cristo eram agricultores e coletores. Tais povos não fortificavam seus povoados, não estabeleciam diferenças hierárquicas entre os túmulos dos homens e das mulheres, ou entre os túmulos dos homens, ou entre os túmulos das mulheres.

Também é possível notar que esses povos não usavam armas como adornos, e que naquilo que podemos supor que eram lugares cerimoniais místicos (de culto), depositavam principalmente figuras femininas. Mais ainda, desses restos arqueológicos podemos também deduzir que as atividades de culto (cerimoniais místicos) eram centradas no sagrado da vida cotidiana, num mundo penetrado pela harmonia da contínua transformação da natureza por meio da morte e do nascimento, abstraída como uma deusa biológica em forma de mulher, ou combinação de mulher e homem, ou de mulher e animal.

Como vivia esse povo matrístico? Os campos de cultivo e coleta não eram divididos. Nada mostra que permita falar de propriedade. Cada casa tinha um pequeno lugar cerimonial, além do local de cerimônias da comunidade. As mulheres e os homens se trajavam de modo muito similar, nas vestes que vemos nas pinturas murais minóicas de Creta.

Tudo indica que viviam imbuídos do dinamismo harmônico da natureza, evocado e venerado sob a forma de uma deusa. Também usavam as fases da lua, a metamorfose dos insetos e as diferentes peculiaridades da vida das plantas e animais, não para representar as características da deusa como um ser pessoal, mas sim para evocar essa harmonia. Para eles, toda a natureza deve ter sido uma contínua fonte de recordação de que todos os aspectos de sua própria vida compartilhavam a sua presença e estavam plenos de sacralidade.

Na ausência da dinâmica emocional da apropriação, esses povos não podem ter vivido na competição, pois as posses não eram elementos centrais de sua existência. Ademais, uma vez que sob a evocação da deusa-mãe os seres humanos eram, como todas as criaturas, expressões de sua presença – e portanto iguais, nenhum melhor do que o outro apesar de suas diferenças -, não podem ter vivido em ações que excluíssem sistematicamente algumas pessoas do bem-estar vindo da harmonia do mundo natural.

Por tudo isso, penso que o desejo de dominação recíproca não foi parte da vida cotidiana desses povos matrísticos. Esse viver deve ter sido centrado na estética sensual das tarefas diárias como atividades sagradas, com muito tempo disponível para contemplar a vida e viver o seu mundo sem urgência.

O respeito mútuo, não a negação suspensa da tolerância ou da competição oculta, deve ter sido o seu modo cotidiano de coexistência, nas múltiplas tarefas envolvidas na vida da comunidade. A vida numa rede harmônica de relações, como a que evoca a noção da deusa, não implica operações de controle ou concessões de poder por meio da autonegação da obediência.

Por fim, já que a deusa constituía, como foi dito, uma abstração da harmonia sistêmica do viver, a vida não pode ter estado centrada na justificação racional das ações que implicam a apropriação da verdade. Tudo era visível ante o olhar inocente e espontâneo daqueles que viviam, como algo constante e natural, na contínua dinâmica de transformação dos ciclos de nascimento e morte. A vida é conservadora. As culturas são sistemas conservadores, porque são os meios nos quais se criam aqueles que as constituem com seu viver ao tornar-se membros delas, porque crescem participando das conversações que as produzem.

Assim, as crianças dessa cultura matrística devem ter crescido nela com a mesma facilidade com que nossas crianças crescem em nossa cultura. Para elas, ser matrísticos na estética da harmonia da natureza deve ter sido natural e espontâneo. Não há dúvida de que possivelmente ocorreram ocasiões de dor, enfado e agressão. Mas elas, como cultura – diferentemente de nós não viviam a agressão, a luta e a competição como aspectos definidores de sua maneira de viver. A seu ver, cair na armadilha da agressão provavelmente foi, para dizer o mínimo, algo de mau gosto (Eisler, 1990).

Com base nessa maneira de viver, podemos inferir que a rede de conversações que definia a cultura matrística não pode ter consistido em conversações de guerra, luta, negação mútua na competição, exclusão e apropriação, autoridade e obediência, poder e controle, o bom e o mau, tolerância e intolerância – e a justificação racional da agressão e do abuso. Ao contrário, é crível que as conversações de tal rede fossem de participação, inclusão, colaboração, compreensão, acordo, respeito e co-inspiração.

Não há dúvida de que a presença dessas palavras, em nosso falar moderno, indica que as coordenações de ações e emoções que elas evocam ou conotam também nos pertencem nos dias de hoje, apesar de nossa vida agressiva. Contudo, em nossa cultura reservamos o seu uso para ocasiões especiais, porque elas não conotam, para a atualidade que vivemos, nosso modo geral de viver. Ou então as tratamos como se evocassem situações ideais e utópicas, mais adequadas para as crianças pequenas, do jardim de infância, do que para a vida séria dos adultos – a menos que as usemos nessa situação tão especial que é a democracia.

4 – O EMOCIONAR

À medida que nos desenvolvemos como membros de uma cultura, crescemos numa rede de conversações, participando com os outros membros dela em uma contínua transformação consensual, que nos submerge numa maneira de viver que nos faz e nos parece espontaneamente natural. Ali, à proporção que adquirimos nossa identidade individual e consciência individual e social (Verden-Zoller, 1978, 1979, 1982), seguimos como algo natural o emocionar de nossas mães e dos adultos com quem convivemos, aprendendo a viver o fluxo emocional de nossa cultura, que torna todas as nossas ações, ações próprias dela.

Em outras palavras, nossas mães nos ensinam sem saber que o fazem, e aprendemos com elas, na inocência de um coexistir não-refletido, o emocionar de sua cultura; e o faze- mos simplesmente convivendo. O resultado é que, uma vez que crescemos como membros de uma dada cultura, tudo nela nos resulta adequado e evidente. Sem que percebamos, o fluir de nosso emocionar (de nossos desejos, preferências, aversões, aspirações, intenções, escolhas…) guia nossas ações nas circunstâncias mutantes de nossa vida, de maneira que todas as ações pertencem a essa cultura.

Insisto que isso simplesmente nos acontece e, a cada instante de nossa existência como membros de uma cultura, fazemos o que fazemos confiando em sua legitimidade, a menos que reflitamos… que é precisamente o que estamos fazendo neste momento. Agindo assim, embora só de um modo superficial, olhemos – tanto no emocionar da cultura patriarcal europeia como no da cultura matrística pré-patriarcal – para o fio básico das coordenações de ações e emoções que constituem as redes de conversação que as definem e estruturam como culturas diferentes.

4.1 – O emocionar patriarcal

No entanto, ainda assim nossa cultura atual tem as suas próprias fontes de conflito, porque está fundamentada no fluir de um emocionar contraditório que nos leva ao sofrimento ou à reflexão. Com efeito, o crescimento da criança, em nossa cultura patriarcal europeia, passa por duas fases opostas.

A primeira ocorre na infância de meninos e meninas, embora eles entrem no processo de tornar-se humanos e crescer, como membros da cultura de suas mães, num viver centrado na biologia do amor como o domínio das ações que tornam o outro um legítimo outro em coexistência conosco. Trata-se de um viver que os adultos, com base na cultura patriarcal em que estão imersos, veem como um paraíso, um mundo irreal de confiança, tempo infinito e despreocupação.

A segunda fase começa quando a criança principia a viver uma vida centrada na luta e na apropriação, num jogo contínuo de relações de autoridade e subordinação. A criança vive a primeira fase de sua vida como uma dança prazerosa, na estética da coexistência harmônica própria da coerência sistêmica de um mundo que se configura com base na cooperação e no entendimento.

A segunda fase de sua vida, em nossa cultura patriarcal europeia, é vivida pela criança que nela entra – ou pelo adulto que ali já se encontra – como um contínuo esforço pela apropriação e controle da conduta dos outros, lutando sempre contra novos inimigos. Em especial, homens e mulheres entram na contínua negação recíproca de sua sensualidade e da sensualidade e ternura da convivência. Os emocionares que conduzem essas duas fases de nossa vida patriarcal europeia são tão contraditórios que se obscurecem mutua- mente. O habitual é que o emocionar adulto predomine na vida adulta, até que a sempre presente legitimidade biológica do outro se torne patente.

Quando isso acontece, começamos a viver uma contradição emocional, que procuramos superar por meio do controle ou do autodomínio; ou transformando-a em literatura, escrevendo utopias; ou aceitando-a como uma oportunidade de refletir, que vivemos como um processo que nos leva a gerar um novo sistema de exigências dentro da mesma cultura patriarcal; ou a abandonar o mundo, refugiando-nos na desesperança; ou a de nos tornarmos neuróticos; ou viver uma vida matrística na biologia do amor.

4.2 – O emocionar matrístico

Numa cultura matrística pré-patriarcal europeia, a primeira infância não pode ter sido muito diferente da infância em nossa cultura atual. Com efeito, penso que ela – como funda- mento biológico do tornarmo-nos humanos ao crescer na linguagem – não pode ser muito diferente nas diversas culturas sem interferir no processo normal de socialização da criança.

A emoção que estrutura a coexistência social é o amor, ou seja, o domínio das ações que constituem o outro como um legítimo outro em coexistência. E nós, humanos, nos tornamos seres sociais desde nossa primeira infância, na intimidade da coexistência social com nossas mães. Assim, a criança que não vive sua primeira infância numa relação de total confiança e aceitação, num encontro corporal íntimo com sua mãe, não se desenvolve adequadamente como um ser social bem integrado (Verden-Zõller, 1978, 1979, 1982).

De fato, é a maneira em que se vive a infância – e a forma em que se passa da infância à vida adulta – na relação com a vida adulta de cada cultura, que faz a diferença nas infâncias das distintas culturas. Por tudo o que sabemos das culturas matrísticas em diferentes partes do mundo, podemos supor que as crianças da cultura pré-patriarcal matrística europeia chegavam à vida adulta mergulhados no mesmo emocionar de sua infância. Isto é, na aceitação mútua e no compartilhamento, na cooperação, na participação, no autorrespeito e na dignidade, numa convivência social que surge e se constitui no viver em respeito por si mesmo e pelo outro.

No entanto, talvez se possa dizer algo mais. A vida adulta da cultura matrística pré-patriarcal europeia não pode ter sido vivida como uma contínua luta pela dominação e pelo poder, porque a vida não era centrada no controle e na apropriação. Se olharmos para as figuras cerimoniais da deusa matrística em suas várias formas, poderemos vê-la como uma presença, uma corporificação, um lembrete e uma evocação do reconhecimento da harmonia dinâmica da existência.

Descrições dela em termos de poder, autoridade ou dominação não se aplicam, pois revelam uma visão patriarcal da deusa. Há figuras que a mostram, antes da cultura patriarcal, como uma mulher nua com traços de pássaros ou serpentes – ou simplesmente como um corpo feminino exuberante ou volumoso, com pescoço e cabeça com características fálicas, ou então sem rosto e com as mãos apenas sugeridas. Tais figuras revelam, segundo penso, a ligação e a harmonia da existência de um viver que não estava centrado na manipulação nem na reafirmação do ego.

Na cultura matrística pré-patriarcal europeia, a vida humana só pode ter sido vivida como parte de uma rede de processos cuja harmonia não dependia exclusiva ou primariamente de nenhum processo particular. Assim, o pensamento humano talvez tenha sido naturalmente sistêmico, lidando com um mundo em que nada existia em si ou por si mesmo, no qual tudo era o que era em suas conexões com tudo mais. As crianças provavelmente cresceram e alcançaram a vida adulta com ou sem ritos de iniciação, chegando a um mundo mais complexo que o pertinente à sua infância, com novas atividades e responsabilidades, à medida que seu mundo se expandia. Mas sempre na participação feliz de um mundo que estava totalmente presente em qualquer aspecto de seu viver.

Além disso, os povos matrísticos europeus pré-patriarcais devem ter vivido uma vida de responsabilidade total, na consciência de pertença a um mundo natural. A responsabilidade ocorre quando se está consciente das consequências das próprias ações e quando se age aceitando-as. Isso inevitavelmente acontece quando uma pessoa se reconhece como parte intrínseca do mundo em que vive.

O pensamento patriarcal é essencialmente linear, ocorre num contexto de apropriação e controle, e flui orientado primariamente para a obtenção de algum resultado particular porque não observa as interações básicas da existência. Por isso, o pensamento patriarcal é sistematicamente irresponsável. O pensamento matrístico, ao contrário, ocorre num contexto de consciência da interligação de toda a existência. Por- tanto, não pode senão viver continuamente no entendimento implícito de que todas as ações humanas têm sempre consequências na totalidade da existência.

Por conseguinte, conforme a criança tornava-se adulta na cultura matrística pré-patriarcal europeia, ela deve ter vivido em contínua expansão da mesma maneira de viver: harmonia na convivência, participação e inclusão num mundo e numa vida que estavam de modo permanente sob seus cuidados e responsabilidade. Nada indica que a cultura matrística europeia pré-patriarcal tenha vivido com uma contradição interna, como a que vivemos em nossa atual cultura patriarcal europeia.

A deusa não constituía um poder, nem era um governante dos distintos aspectos da natureza, que devia ser obedecida na autonegação, como podemos nos inclinar a pensar, baseados na perspectiva de nosso modo patriarcal de viver, centrado na autoridade e na dominação. No povo matrístico pré-patriarcal europeu, ela era a corporificação de uma evocação mística do reconhecimento da coerência sistêmica natural que existe entre todas as coisas, bem como de sua abundância harmônica. E os ritos realizados em relação a ela provavelmente foram vividos como lembretes místicos da contínua participação e responsabilidade humana na conservação dessa harmonia.

O sexo e o corpo eram aspectos naturais da vida, e não fontes de vergonha ou obscenidade. E a sexualidade deve ter sido vivida na interligação da existência. Não primariamente como uma fonte de procriação, mas sim como uma vertente de prazer, sensualidade e ternura, na estética da harmonia de um viver no qual a presença de tudo era legitimada por meio de sua participação na totalidade. As relações humanas não eram de controle ou dominação, e sim de congruência e cooperação, não para realizar um grande projeto cósmico, mas sim um viver interligado, no qual a estética e a sensualidade eram a sua expressão normal.

Para esse modo de vida, uma dor ocasional, um sofrimento circunstancial, uma morte inesperada, um desastre natural, eram rupturas da harmonia normal da existência. Eram também chamadas de atenção diante de uma distorção sistêmica, que surgia por causa de uma falta de visão humana que punha em perigo toda a existência.

Viver dessa maneira requer uma abertura emocional para a legitimidade da multidimensionalidade da existência que só pode ser proporcionada pela biologia do amor. A vida matrística europeia pré-patriarcal estava centrada no amor, como a própria origem da humanidade, e nela a agressão e a competição eram fenômenos ocasionais, não modos cotidianos de vida.

5 – ORIGEM DO PATRIARCADO – PARTE 1A

A cultura matrística europeia pré-patriarcal estava centrada no amor e na estética, na consciência da harmonia espontânea de todo o vivo e do não-vivo, em seu fluxo contínuo de ciclos entrelaçados de transformação de vida e morte. Mas se assim era, como pôde surgir a cultura patriarcal, centrada na apropriação, hierarquia, inimizade, guerra, luta, obediência, dominação e controle?

A arqueologia nos mostra que a cultura pré-patriarcal europeia foi brutalmente destruída por povos pastores patriarcais, que hoje chamamos de indo-europeus e que vieram do Leste, há cerca de sete ou seis mil anos. De acordo com essas evidências, o patriarcado não se originou na Europa. Quando o patriarcado indo-europeu invadiu a Europa, trans- formou-se em patriarcado europeu por meio de seus encontros com as culturas matrísticas lá preexistentes. Em outras palavras, o patriarcado foi trazido à Europa por povos invasores, cujos ancestrais haviam-se tornado patriarcais no curso de sua própria história de mudanças culturais em alguma outra parte, de maneira independente das culturas matrísticas europeias. Nesta seção, meu propósito é refletir sobre como ocorreram as mudanças culturais que deram origem ao Patriarcado em nossos ancestrais indo-europeus.

Como disse antes, penso que uma cultura é uma rede fechada de conversações, conservada como modo de viver num sistema de comunidades humanas. Para compreender como acontecem modificações culturais, é necessário olhar para as circunstâncias que podem ter originado uma mudança na rede de conversações que constitui a cultura em alteração. Foi também dito que, para que se produza uma transformação de cultura, deve mudar o emocionar fundamental que constitui os domínios de ações da rede de conversações que forma a cultura em transição. Foi dito, ainda, que sem modificação no emocionar não há mudança cultural.

Em outras palavras, acredito que para compreender como uma cultura específica pode ter se modificado, na história humana, devemos reconstruir o conjunto de circunstâncias sob as quais a nova configuração de emocionar que constitui os fundamentos da nova cultura pode ter começado a conservar-se de maneira transgeracional, como o fundamento de uma nova rede de conversações, numa comunidade humana específica que originalmente não a vivia. Tal comunidade pode ter sido tão pequena como uma família, e o novo emocionar não deve ter sido nada de especial como emocionar ocasional.

Com efeito, acho que na origem de uma nova cultura o novo emocionar surge como uma variação ocasional e trivial do emocionar cotidiano próprio da cultura antiga. Além do mais, creio que nesse processo a nova cultura surge quando a presença do novo emocionar contribui para a realização das condições que tornam possível a sua ocorrência no viver cotidiano. Como resultado disso, o novo emocionar começa a se conservar de maneira transgeracional como uma nova forma corrente de viver em comunidade, numa mudança que é aprendida de modo simples, pelos jovens e recém-chegados membros dessa comunidade.

Por fim – e em termos gerais -, uma linhagem, seja biológica ou cultural, se estabelece por meio da conservação transgeracional numa maneira de viver, à medida que esta é praticada de fato pelos jovens da comunidade.

Assim, qualquer variação ocasional da forma de vida corrente de uma comunidade específica, que começa a ser conservada geração após geração, constitui uma mudança que dá origem a uma nova linhagem. Se esta persistirá ou não, depende evidentemente de outras circunstâncias, ligadas às consequências da manutenção da nova maneira de viver. Toda- via, convém destacar – agora e em relação a isso – que o surgimento de uma nova linhagem só pode acontecer como uma variação da maneira de viver já estabelecida que, ao conservar-se de modo transgeracional, constitui e define a nova linhagem.

No caso particular das culturas como linhagens humanas de modos de convivência, só se produz uma modificação numa dada comunidade humana quando uma nova forma de viver como rede de conversações começa a se manter geração após geração. Isso acontece cada vez que uma configuração no emocionar – e portanto uma nova configuração no agir – principia a fazer parte da forma corrente de incorporação cultural das crianças de tal comunidade e estas aprendem a vivê-la.

Vejamos o que deve ter acontecido na transformação da maneira de viver que deu origem à cultura patriarcal indo-europeia, quando o emocionar fundamentou o que constituiu a forma típica de viver na apropriação, inimizade, hierarquias e controle, autoridade e obediência, vitória e derrota. Depois de surgir como um traço ocasional, no modo de vida de uma das comunidades ancestrais, esse emocionar começou a se manter, geração após geração, como um simples resultado da aprendizagem espontânea das crianças dessa comunidade. Imaginemos agora como isso pode de fato ter acontecido.

Entre os povos paleolíticos – fundamentalmente matrísticos – que viviam na Europa há mais de 20 mil anos, houve alguns que se tornaram sedentários, coletores e agricultores. Outros se movimentaram para o Leste até à Ásia, seguindo as migrações anuais de manadas de animais silvestres, como os lapões faziam com as renas até épocas recentes ou mesmo, talvez, ainda hoje. Essas comunidades humanas que seguiam os animais em suas migrações não eram pastoras, pois não eram proprietárias desses rebanhos. Não possuíam os animais dos quais viviam, porque não limitavam a mobilidade de tais rebanhos de modo a restringir significativamente o acesso a eles por outros animais – como os lobos -, que também se alimentavam de sua carne como parte da vida silvestre natural. Na ausência de tal restrição, os lobos permaneciam como comensais, com direitos inquestionados de alimentação, embora fossem ocasionalmente ameaçados para que fossem comer um pouco mais longe.

Em outras palavras, proponho que naqueles tempos remotos nossos ancestrais matrísticos, na origem do patriarcado, não eram pastores porque não restringiam o acesso de outros animais às manadas das quais eles próprios se alimentavam. Sugiro que não faziam isso porque o emocionar da apropriação não fazia parte de seu viver cotidiano. A criação de animais domésticos no lar implica uma maneira de viver completamente distinta do pastoreio, pois, entre outras coisas, é o cuidado e a atenção nas cercanias do lar – e não a apropriação – o emocionar que o define.

Portanto, sustento que a cultura do pastoreio, isto é, a rede de conversações que o constitui, surge quando os membros de uma comunidade humana, que vive seguindo alguma manada específica de animais migratórios, começa a restringir o acesso a eles de outros comensais naturais, como os lobos. E, além disso, que o fazem não apenas de modo ocasional, mas sim como prática cotidiana que se mantém de maneira transgeracional, por meio da aprendizagem corrente e espontânea das crianças que crescem nessa comunidade. Também afirmo que o pastoreio, como modo de vida, não pode ter surgido sem a mudança do emocionar que o tornou possível como maneira de viver, e que tal mudança no emocionar surgiu no próprio processo no qual se começou a vi- ver dessa forma.

Em geral, não vemos essa interdependência entre a mudança no emocionar e a modificação cultural, porque não estamos habitualmente conscientes de que toda cultura, como uma rede de conversações, é um modo específico de entrelaçamento do linguajear e do emocionar. Também não é fácil para nós, humanos patriarcais modernos, compreender a mudança no emocionar implicada na adoção de novas maneiras de viver: estamos acostumados a explicar o que fazemos ou o que nos acontece com argumentos racionais, que excluem a perspectiva do emocionar. Mas não é raro observar que uma pessoa pode viver uma grande transformação em seu emocionar, em relação a alterações de seu modo de vida.

Com efeito, essas transformações no emocionar acontecem com frequência quando há mudanças no trabalho, na situação econômica ou no âmbito místico. Quando elas ocorrem, frequentemente se pensa que são consequência de mudanças no trabalho ou nas condições de vida. Penso que não é assim. Acredito que é a transformação no emocionar que possibilita as circunstâncias de vida nas quais acontece a alteração de trabalho, situação econômica ou vida mística. E quando tal ocorre, os dois processos – as novas maneiras de viver e de emocionar – acontecem daí em diante de tal forma que se implicam e se apoiam mutuamente.

Desse modo, acho que se quisermos compreender como ocorreu uma mudança de cultura histórica, teremos de imaginar as condições de vida que tornaram possível a modificação no emocionar sob o qual se deu tal mudança, dando origem a uma rede de conversações que começou a se manter como resultado de sua própria realização.

Voltemos agora ao que creio ter acontecido na adoção do modo de vida pastoril por nossos ancestrais indo-europeus pré-patriarcais. O primeiro passo foi a operação inconsciente que constitui a apropriação, isto é, o estabelecimento de um limite operacional que negou aos lobos o acesso a seu alimento natural, que eram os animais da mesma manada da qual vivia a família que começou tal exclusão. A implementação do limite operacional cedo ou tarde levou à morte dos lobos. Matar um animal não era, seguramente, uma novidade para nossos ancestrais. O caçador tira a vida do animal que irá comer. Contudo, fazer isso e matar um animal restringindo-lhe o acesso a seu alimento natural – e agir assim de modo sistemático – são ações que surgem sob emoções diferentes. No primeiro caso, o caçador realiza um ato sagrado, próprio das coerências do viver no qual uma vida é tirada para que outra possa continuar. No segundo caso, aquele que mata o faz dirigindo-se diretamente à eliminação da vida do animal que mata. Essa matança não é um caso no qual uma vida é tirada para que outra possa prosseguir; aqui, uma vida é suprimida para conservar uma propriedade, que fica definida como tal nesse mesmo ato.

As emoções que tornam essas duas atitudes completamente diferentes são de todo opostas. Na primeira circunstância o animal caçado é um ser sagrado, que é morto como parte do equilíbrio da existência; aqui, o caçador que tira a vida do animal caçado fica agradecido. Na segunda alternativa, o animal cuja vida se tira é uma ameaça à ordem artificial, criada em seu ato pela pessoa que se transforma em pastor. Nessa situação, ela fica orgulhosa. Doravante, falarei em caçada apenas para referir-me ao primeiro caso. Na segunda hipótese, falarei em matar ou assassinar. Entretanto, note-se que tão logo as emoções que constituem essas duas ações se tornam aparentes, também fica claro que na ação de caça o animal caçado é um amigo, enquanto que na ação de matar o animal morto é um inimigo.

Com efeito, acho que com a origem do pastoreio surgiu o inimigo – aquele cuja vida a pessoa que se torna um pastor quer destruir para assegurar a nova ordem que se instaura por meio desse ato, que configura a defesa de algo que se transforma em propriedade nessa mesma atitude de defesa. Ou seja: mantenho que a vida pastoril de nossos ancestrais surgiu quando uma família que vivia seguindo os movimentos livres de alguma manada silvestre adotou o hábito de impedir a outros animais – que eram comensais naturais – seu livre acesso à dita manada. Em tal processo, esse hábito se transformou numa característica conservada de modo trans-geracional, como forma de vida cotidiana dessa família.

Além disso, sustento que a adoção desse hábito numa família deve ter comportado, como um traço desse mesmo processo, mudanças adicionais no emocionar. Estas a levaram a incluir, juntamente com o emocionar da apropriação, outras emoções, como a inimizade; a valorização da procriação, bem como a associação da sexualidade das mulheres a esta; o controle da sexualidade das mulheres como procriadoras pelo patriarca e o controle da sexualidade do homem pela mulher como propriedade; a valorização das hierarquias e a obediência como características intrínsecas da rede de conversações que constituiu o modo pastoral de vida.

Por fim, também sustento que, devido ao modo humano de generalizar o entendimento, a rede de conversações que constituiu a vida pastoril patriarcal se tornou a mesma rede que estruturou o patriarcado como uma maneira de viver independentemente do pastoreio, sob a forma de uma rede de conversações que suscitam:

a) relações de apropriação e exclusão, inimizade e guerra, hierarquia e subordinação, poder e obediência;

b) relações com o mundo natural, que se deslocaram da confiança ativa na harmonia espontânea de toda a existência para a desconfiança ativa nessa harmonia e para um desejo de dominação e controle;

c) relações com a vida que se deslocaram da confiança na fertilidade espontânea de um mundo sagrado, que existe na legitimidade da abundância harmônica e do equilíbrio natural de todos os modo de vida, para a busca ansiosa da segurança. Esta traz consigo a abundância unidirecional, obtida pela valorização da procriação, a apropriação e o crescimento ilimitado;

d) relações de existência mística, que se deslocaram da aceitação original da participação na unidade dos seres vivos, por meio de uma experiência de pertença a uma comunidade humana que se estende à totalidade vivente. Tal deslocamento leva ao desejo de abandonar a comunidade viva, mediante experiências de pertença a uma unidade cósmica, a qual configura um domínio de espiritualidade invisível que transcende os vivos.

5 – ORIGEM DO PATRIARCADO – PARTE 1B

Voltemos à minha proposição de como a cultura patriarcal indo-europeia pode ter se originado, e de como nossa cultura patriarcal europeia moderna pode ter dela derivado. Para tanto buscarei reconstruir a história, considerando as várias transformações que acredito que devem ter ocorrido ao longo desse processo.

Os membros de uma pequena comunidade humana (que pode ter sido uma família; entendo por família um grupo de adultos e crianças que funciona como uma unidade de convivência) que viviam seguindo alguma manada de animais migratórios, rechaçavam ocasionalmente os lobos que se alimentavam desta. Enquanto esse afugentamento dos lobos foi ocasionalmente bem sucedido – sem a morte deles -, não ocorreu nenhuma mudança fundamental no emocionar dos membros dessa comunidade.

Contudo, quando o rechaçar, o perseguir os lobos e o correr com eles – de modo a que não se alimentassem da manada – transformou-se numa prática cotidiana, aprendida pelas crianças geração após geração, produziu, entrelaçada com essa prática, uma mudança básica no emocionar dos membros de tal comunidade e surgiu um modo de viver na proteção da manada. Isto é: surgiu um modo de vida que incluía o emocionar da apropriação e defesa daquilo que havia sido apropriado. À medida que essa forma de emocionar começou a ser conservada, geração após geração, as crianças da comunidade aprenderam a viver em ações que negavam aos lobos o acesso normal à manada. E apareceram outras emoções, que também começaram a se transmitir de pais para filhos.

Assim, enquanto se começou a perseguir os lobos para impedir-lhes o acesso à alimentação normal, surgiu a insegurança. Esta veio da perda de confiança, trazida pela contínua atenção aos comportamentos de proteção das manadas diante dos lobos, já excluídos como comensais naturais. Além do mais, quando surgiu o emocionar da insegurança, a segurança começou a ser vivida como a total exclusão dos lobos por meio da morte. Entretanto, ao ocorrerem essas modificações no emocionar e no agir, deve ter aparecido outra mudança no emocionar. Ela constituiu uma alteração básica e nova na maneira de viver da comunidade, a saber, a inimizade como desejo recorrente de negar a um outro em particular.

Ao surgir a inimizade surgiu o inimigo; e assim os instrumentos de caça – até então usados para matar o lobo como um inimigo – se transformaram em armas.

(Notemos – quase como uma reflexão à parte – que nos mitos patriarcais o lobo é o grande inimigo. Fala-se do lobo como cruel e sanguinário, mas ele não o é. Em sua vida silvestre, esse animal não ataca o ser humano. O que ele procura são os animais que sempre lhe serviram de alimento, os quais são protegidos pelos humanos em seu pastoreio. É no aparecimento do patriarcado que o lobo surge como inimigo, num processo associado à perda de confiança no mundo natural que ele reforça.)

Mas o que implicam as mudanças do modo de vida recém-mencionado? Reflitamos um instante. Na condição de maneira de viver, uma cultura é uma rede de conversações mantida de maneira transgeracional, como um núcleo de coordenações consensuais de coordenações consensuais de ações e emoções. Em torno dela, podem aparecer novas ações e emoções. Quando estas também começam a ser conservadas transgeracionalmente, na rede de conversações que define essa comunidade, ocorre uma mudança cultural. As ações e emoções humanas podem ser as mesmas em muitos domínios diferentes de existência (ou do fazer), e o que um aprende num domínio de existência (ou do fazer) pode ser facilmente transferido a outro.

Assim, uma vez que as conversações de inimizade e apropriação foram aprendidas na vida pastoril, elas puderam ser vividas em outros domínios de existência. E puderam ocorrer em relação a outras entidades como a terra, as ideias ou as crenças, quando surgiram as circunstâncias de vida apropriadas. Do mesmo modo, embora a apropriação e a inimizade possam ter começado como aspectos do emocionar do homem, se foi ele quem iniciou o pastoreio nos termos que assinalamos, nada restringe esse emocionar apenas aos humanos.

O patriarcado como modo de vida não é uma característica do ser do homem. É uma cultura, e portanto um modo de viver totalmente vivível por ambos os sexos. Homens e mulheres podem ser patriarcais, assim como ambos podem ser, e foram, matrísticos.

Continuemos agora com nossa reconstrução da origem do patriarcado indo-europeu e do patriarcado europeu moderno. Uma vez que a vida pastoril se manteve no cuidado dos animais apropriados e na defesa contra os lobos – que foram transformados em inimigos perdeu-se a confiança na coerência e no equilíbrio natural da existência. E então a segurança em relação à disponibilidade dos meios de vida começou a ser uma preocupação, amainada pelo crescimento da manada ou do rebanho sob o cuidado do pastor.

Nesse processo, devem ter-se produzido três modificações adicionais na dinâmica do emocionar de nossos ancestrais, que se transmitiram de pai para filho: o desejo constante por mais, numa interminável acumulação de coisas que proporcionavam segurança; a valorização da procriação como forma de obter segurança mediante o crescimento do rebanho ou manada; e o temor da morte como fonte de dor e perda total. Como resultado desse novo emocionar, a fertilidade deixou de ser vivida como coerência e harmonia da abundância natural de todas as formas de vida, na dinâmica cíclica e espontânea de nascimento e morte; e começou a ser vivida como procriação e crescimento que proporcionam segurança.

A vida no interior da família pastoril provavelmente mudou de um modo coerente com o vivido anteriormente. A participação do homem na procriação, que até aqui era vista como parte da harmonia da existência, deve ter começado a ser associada à apropriação dos filhos, da mulher e da família. Além disso, a sexualidade da mulher deve ter-se convertido em propriedade do homem que gerava os seus filhos. Como resultado, as crianças e as mulheres perderam sua liberdade ancestral para transformar-se em propriedade. E as mulheres das famílias pastoris, por meio da associação de sua sexualidade com a procriação, converteram-se, junto com as fêmeas da manada, numa fonte de riqueza.

Finalmente, nessa transformação cultural a apropriação pelo pastor da vida sexual da mulher se deu junto com a apropriação de seus filhos. Com a valorização da procriação, a família pastoril se transformou numa família patriarcal e o homem pastor converteu-se em patriarca. Mas essa transformação da maneira de viver – na qual uma família nômade, comensal de alguma manada migratória de animais silvestres passou a ser pastora – teve uma consequência fundamental: a explosão demográfica, animal e humana.

De fato, a valorização da procriação implica ações que abrem as portas ao crescimento exponencial da população. Isso se deve a que essa valorização se opõe a qualquer ação de regulação dos nascimentos e do crescimento da população, que permite a noção matrística de fertilidade como coerência sistêmica de todos os seres vivos em seus ciclos contínuos de vida ou morte.

Não devemos esquecer, porém, que essas mudanças culturais – como modificações na rede de conversações que constituíam a maneira de viver da família em mudança – surgem de alterações no emocionar e nas coordenações de ações. Estas devem ter acontecido inicialmente na harmonia da vida cotidiana. Ou seja, essas mudanças devem ter ocorrido pela transformação harmônica de uma forma conservadora de vi- ver – que envolvia de modo natural a todos os membros da família – em outra, que também os envolveu de maneira natural.

Assim, enquanto as mulheres e crianças, juntamente com os homens, tornavam-se patriarcais no processo de se tornarem pastores, a biologia do amor deve ter permanecido a base de seu estar juntos como família. Isso aconteceu ao longo de uma transformação na qual homens e mulheres não estavam em oposição constitutiva, e na qual as crianças cresciam na intimidade de relações materno-infantis de aceitação e confiança. Os homens não tinham dúvidas nem contradições básicas em suas relações com as mulheres e crianças que constituíam suas famílias, nem estas em suas relações com eles. As mudanças fundamentais que foram acontecendo, na transformação que originou a família patriarcal pastoril, devem ter ocorrido como um processo imperceptível para a própria família em transformação.

Em outras palavras, a mudança no emocionar dentro da família – no que diz respeito à mobilidade e à autonomia das mulheres e crianças que foi ocorrendo na estrutura patriarcal pastoril emergente, não foi visível no seio da família em transformação; nela, os homens, mulheres e crianças se tornaram patriarcais sem conflitos. Nesse processo a vida das crianças mudou, da infância à vida adulta, num movimento em que o emocionar da vida adulta surgiu como uma transformação do emocionar da infância, não como uma negação do infantil e do feminino pelo homem. Desse modo, tal modificação possivelmente foi vivida com inocência na família patriarcal.

Devemos notar também que essas mudanças no emocionar e no agir – mesmo quando deram origem, na família patriarcal, a uma forma de viver completamente diversa do modo de vida da família matrística original – ocorreram como processos sem reflexão, fora de qualquer intencionalidade, no simples fluir da vida cotidiana. Assim, o homem começou a intervir na proteção diária da manada, e aprendeu a fazê-lo matando eventualmente os lobos. As mulheres e crianças também aprenderam o mesmo, tomando parte no estabelecimento da nova forma de viver na inimizade com os lobos e na apropriação da manada.

Em tal processo, a apropriação e a inimizade, a defesa e a agressão se tornaram parte da forma de vida que se conservou transgeracionalmente no devir histórico de uma determinada comunidade. Enquanto isso ocorria, esse emocionar deve ter constituído uma operacionalidade delimitadora, que separou essa comunidade das outras. E o fez de maneira transitória ou permanente, a depender de se essas outras comunidades estavam ou não dispostas a adotar o novo emocionar e agir, e com eles o novo conversar.

Porém – como foi dito anteriormente a aprendizagem do emocionar é transferível. Uma vez que a inimizade e a apropriação foram aprendidas como modos de emocionar num dado domínio de experiências, elas puderam ser vividas em outros. Por isso, uma vez que a inimizade e a apropriação se tornaram características da forma de viver na proteção de um rebanho, também passaram a fazer parte da defesa de outras características e formas de vida, como ideias, verdades ou crenças.

Abriram-se então as portas para o fanatismo, a avidez e a guerra. Além do mais, as oportunidades para a inimizade e a defesa da propriedade devem ter surgido enquanto o crescimento da população e as migrações consequentes forçaram o encontro de comunidades diferentes. Muitas delas poderiam já ter desenvolvido alguns sistemas de crença próprios que, por já serem pastoras patriarcais, também estariam prontas para defender. Crenças místicas, por exemplo.

5 – ORIGEM DO PATRIARCADO – PARTE 1C

Nós, humanos, podemos ter de maneira espontânea, num momento ou em outro de nossas vidas, uma experiência peculiar. E a vivemos como uma percepção súbita de nossa conexão e participação num domínio mais amplo de existência, para além do entorno imediato. Sustento que essa experiência peculiar de perceber que se pertence ou se é parte de um âmbito de identidade maior que o da estreita vida individual é o que em geral se conota, em diferentes culturas, quando se fala de uma experiência mística ou espiritual.

Também afirmo que a experiência mística – repito: a experiência na qual uma pessoa vive a si mesma como componente integral de um domínio mais amplo de relações de existência – pode acontecer-nos de modo espontâneo. Nesse caso, certas condições internas e externas surgem naturalmente ao longo de nossas vidas. Podem também surgir como consequência da realização intencional de determinadas práticas, que resultam na criação artificial de tais condições. Em qualquer dos casos, todavia, a forma pela qual a experiência mística é vivida depende da cultura em que ela ocorre, ou seja, depende da rede de conversações em que ela está imersa, e na qual vive a pessoa que tem essa experiência.

Assim, acho que na cultura matrística agricultora e coletora da Europa pré-patriarcal, as experiências místicas foram vividas como uma integração sistêmica na rede do viver, dentro da comunidade de todos os seres vivos. “A comunidade e eu, o mundo do viver e eu, somos um só. Todos os seres vivos e não-vivos pertencemos ao mesmo reino de existências interconectadas… todos viemos da mesma mãe, e somos ela porque somos unos com ela e com os outros seres, na dinâmica cíclica do nascimento e da morte”. Esta poderia ser a descrição de uma experiência mística da gente matrística, expressa com nossas palavras.

Compartilhar e participar na harmonia da coexistência, por meio da igualdade e da unidade de todos os seres vivos e não-vivos – sem importar quais possam ser suas diferenças individuais específicas na contínua renovação cíclica e recorrente da vida: eis o que acho que devem ter sido os elementos relacionais predominantes da experiência mística matrística. Creio que a experiência mística dos povos europeus matrísticos pré-patriarcais teve essas características. E assim ocorreu porque as pessoas agricultoras e coletoras raramente devem ter experimentado a vida sem o total apoio e proteção das comunidades às quais pertenciam, ou mediante a ruptura de sua conexão com uma natureza harmoniosa e acolhedora.

Em outras palavras, acredito que a experiência mística da gente matrística europeia pré-patriarcal foi de conexão com a concretude da vida diária. Também creio que esse modo proporcionou uma abertura para ver tudo o que era visível. Em suma, julgo que a “espiritualidade” matrística é inerentemente terrestre.

Na cultura patriarcal pastoril, as coisas devem ter sido diferentes. Sabemos que o emocionar fundamental que define a rede de conversações patriarcais pastoris está centrado na apropriação, defesa, inimizade, procriação, controle, autoridade e obediência. Por isso, é possível que a experiência mística de nossos ancestrais patriarcais indo-europeus mais antigos tenha sido muito diferente da que descrevemos para a cultura matrística europeia pré-patriarcal. O pastor talvez tenha passado muitos dias e noites, durante o verão, afasta- do da companhia protetora de sua comunidade, enquanto cuidava, seguia ou guiava seus rebanhos em busca de boas pastagens nos vales montanhosos. Ao mesmo tempo ele os protegia dos lobos, que se haviam transformado em seus inimigos. Lá, solitário, exposto à amplitude imensa do céu estrelado e enfrentando a grandeza imponente das montanhas, ele deve ter presenciado, simultaneamente fascinado e aterrorizado, os muitos fenômenos elétricos luminosos e inesperados que ocorrem nessas paragens – e não só em dias de tempestade.

Creio que nessas circunstâncias a experiência mística e espontânea dos pastores foi vivida como pertença e conexão, num âmbito cósmico ameaçador e impressionante por seu poder e força. Tal ambiente, ao mesmo tempo cheio de inimizade e amizade, simultaneamente belo e perigoso, é um domínio cósmico no qual só se pode existir na submissão e obediência. “Pertenço ao cosmos apesar de minha infinita pequenez; submeto-me ao poder dessa totalidade obedecendo às suas exigências, tal como me submeto à autoridade do patriarca”. Esta poderia ser a descrição de uma experiência mística, vivida por nosso pastor imaginário na solidão de uma noite aberta nas montanhas.

Penso que na cultura pré-patriarcal matrística da Europa o indivíduo que teve uma experiência mística manteve-se conectado, por meio dela, com o confortável reino diário e tangível do viver. Na cultura pastoril patriarcal, porém, o pastor que teve uma experiência mística, na solidão da montanha, vivenciou uma transformação que o ligou a um reino intocável de relações de imensidão, poder, temor e obediência.

Acredito ainda que, na cultura matrística da Europa pré-patriarcal, a pessoa que passou por uma experiência mística deve ter vivido a congruência na harmonia de uma dinâmica sempre renovada de nascimento e morte. Contudo, na cultura patriarcal pastoril, o pastor com o mesmo tipo de experiência certamente teve uma vivência de submissão e fascinação, diante do fluxo ameaçador de um poder que deu lugar à vida e à morte, na conservação e ruptura de uma ordem precária, baseada na obediência ao seu arbítrio.

A experiência mística da cultura patriarcal pastoril provavelmente foi de conexão com um reino abstrato de natureza completamente diverso daquele da vida diária. Isto é, essa experiência mística deve ter sido de pertença a um âmbito de existência transcendental, e assim se constituiu numa abertura para ver o invisível. Além disso, é provável que os relatos dos pastores, que voltaram transformados como resultado de suas experiências místicas espontâneas, foram ouvidos pelas comunidades tanto com admiração quanto com medo. Elas ouviram e entenderam esse discurso de autoridade e subordinação, poder e obediência, amizade e inimizade, exigência e controle em termos inteiramente pessoais, e podem ter sido seduzidas por sua grandeza. Com paixão suficiente após uma experiência mística, um pastor talvez tenha se tornado um líder espiritual.

Para resumir: na cultura matrística não-patriarcal da Europa antiga, a experiência mística foi vivida como uma pertença plena de prazer, numa rede mais ampla de existência cíclica que englobava tudo o que estava vivo e não-vivo no fluxo de nascimento e morte. Deve ter implicado o autorrespeito e a dignidade da confiança e aceitação mútuas. De modo contrário, na cultura patriarcal pastoril a experiência mística provavelmente foi vivida como pertença a um âmbito cósmico imenso, temível e sedutor, de uma autoridade arbitrária e invisível. O que deve ter implicado a exigência de uma absoluta negação de si mesmo, pela total submissão a esse poder, própria do fluxo unidirecional de inimizade e amizade de toda autoridade absoluta.

Em outros termos, o misticismo matrístico convida à participação e à colaboração no autorrespeito e no respeito pelo outro e, inevitavelmente, não é exigente, profético ou missionário. Já o misticismo patriarcal convida à autonegação da submissão e desse modo fatalmente se torna exigente, profético e missionário.

Quero agora fazer uma pequena digressão fisiológica. O sistema nervoso é constituído de uma rede neuronal fechada, com uma estrutura plástica que muda seguindo um curso contingente à sequencia das interações do organismo que ele integra (Maturana, 1983). Nessas circunstâncias, a forma como opera o sistema nervoso de um animal é, sempre e necessariamente, função de sua história específica de vida. Por causa disso um sistema nervoso implica, em seu funcionamento, a história individual do animal de que é parte. Em nós, humanos, essa relação entre a história de vida de um animal e a estrutura de seu sistema nervoso implica que, independentemente de se ele está acordado ou dormindo – e em todas as experiências que podemos viver -, nosso sistema nervoso funciona, sempre e necessariamente, de uma forma congruente com a cultura a que pertencemos: gera uma dinâmica comportamental que faz sentido nessa cultura.

Dito de outro modo: os valores, imagens, temores, aspirações, esperanças e desejos que uma pessoa vive em qualquer experiência – esteja ela desperta ou sonhando, seja uma experiência comum ou mística – são necessariamente os valores, imagens, temores, aspirações, esperanças e desejos de sua cultura, somados às variações que essa pessoa possa ter acrescentado à sua vida pessoal, individual. É por causa dessa relação entre o funcionamento do sistema nervoso de uma pessoa e a cultura à qual ela pertence, que afirmo que os povos das culturas europeias matrística e patriarcal pastoril devem ter tido experiências místicas diferentes. Além disso, tais experiências devem ter sido diversas porque cada uma delas incorpora necessariamente o emocionar da cultura na qual surge.

Proponho esta reconstituição da origem de nossa cultura patriarcal porque me dei conta de que todas as experiências humanas – inclusive as místicas – ocorrem como parte da rede de conversações que constituem a cultura em que surgem e, portanto, incorporam o seu emocionar. Ademais, dado que acho que é o emocionar de uma cultura que define o seu caráter, creio que minha reconstituição do que podem ter sido as experiências místicas de nossos ancestrais europeus matrísticos – e de nossos ancestrais patriarcais pastores indo-europeus – é tão boa quanto minha reconstrução do emocionar dessas culturas. Acredito que essa reconstrução é boa porque ela recolhe as emoções dos elementos matrísticos e patriarcais de nossa cultura europeia patriarcal moderna.

Continuemos, então. Uma vez surgida a forma de viver patriarcal pastoril, a família ou comunidade na qual ela começa a ser mantida de modo transgeracional se expande, tanto por meio da sedução de outras famílias ou comunidades quanto mediante o crescimento populacional humano descontrolado. Além disso, tal crescimento, numa comunidade pastora, deve ter ocorrido acompanhado de uma ampliação comparável dos rebanhos. Essa circunstância inevitavelmente levou a um abuso das pastagens e a uma expansão territorial, o que não pode ter deixado de resultar em alguma forma de conflito com outras comunidades. Tais conflitos possivelmente ocorreram independente de que essas comunidades tenham ou não estado centradas na apropriação e na inimizade. A guerra, a pirataria, a dominação política e a escravidão devem ter começado nessa época e, eventualmente, produziram migrações maciças, em busca de novos recursos a serem apropriados.

Imagino que foi sob essas circunstâncias que nossos ancestrais indo-europeus chegaram à Europa, num movimento de conquista, pirataria e domínio. Se a apropriação é legítima, se a inimizade faz parte do emocionar da cultura, se a autoridade, a dominação e o controle são características da forma de viver de uma comunidade humana, então a pirataria é possível ou mesmo natural. Além do mais, se a apropriação é parte do modo natural de viver tudo está aberto a ela: os homens, as mulheres, os animais, as coisas, o países, as crenças… Se o emocionar adequado estiver presente, tudo pode ser capturado pela força, do mesmo modo que os lobos foram originalmente excluídos de seu legítimo acesso aos rebanhos silvestres nos quais se alimentavam.

Assim, à medida que os povos patriarcais indo-europeus começaram a se deslocar para a Europa, levaram consigo a guerra. Mas não só ela: levaram também um mundo completamente diverso daquele que encontraram. Esses povos foram donos de propriedades e delas defensores; foram hierárquicos; exigiram obediência e subordinação; valorizaram a procriação e controlaram a sexualidade das mulheres. Os povos matrísticos europeus não se assemelhavam a nada disso. Em seu encontro com a gente matrística europeia, os indo-europeus patriarcais pastores depararam com seu completo oposto cultural em cada aspecto material ou espiritual.

Mais ainda: como povos patriarcais pastores, eles devem ter vivido essas diferenças opostas como uma ameaça ou perigo à sua própria existência e identidade. Do mesmo modo que vivenciaram sua relação com os lobos, na qual, por meio da apropriação do rebanho, provocaram o seu extermínio, sua reação deve ter sido a defesa de sua própria cultura pela negação da outra, tanto por seu completo controle e domínio quanto por sua total destruição.

Quando constituem ideias ou crenças, os títulos de propriedade e a defesa das “legítimas” possessões de um indivíduo criam limites. Estes separam o que é correto do que não o é, o que é legítimo do que é ilegítimo, o aceitável do inaceitável.

Se vivermos centrados na apropriação, viveremos tanto nossas propriedades quanto nossas ideias e crenças como se elas fossem nossa identidade.

Que isso acontece dessa maneira é evidente pelo fato de que nós, ocidentais patriarcais modernos, vivemos qualquer ameaça a nossas propriedades – e qualquer contradição ou falta de acordo com nossas ideias e crenças – como um perigo ou ameaça que põe em risco os próprios fundamentos de nossa existência. Como resultado, em seu encontro com a cultura europeia matrística os indo-europeus patriarcais pastores viram no sistema de crenças completamente diverso dessa cultura um perigo e ameaça à sua identidade. Essa circunstância deve ter ocorrido especificamente em relação às crenças místicas que estão na base das experiências que dão significado à vida humana. Quando ocorreu o encontro dos povos patriarcais com os europeus matrísticos, os primeiros começaram a defender e impor suas crenças místicas patriarcais. Estabeleceu-se então uma fronteira de legitimidade entre ambos os sistemas de crenças místicas, e os dois se tornaram religiões.

Uma religião é um sistema fechado de crenças místicas, definido pelos crentes como o único correto e plenamente verdadeiro. Antes de seu violento encontro com o patriarcado pela invasão dos indo-europeus patriarcais pastores, a gente matrística não vivia numa religião, pois não viviam na apropriação e defesa da propriedade.

Reflitamos um momento sobre esse assunto. Os povos matrísticos tiveram crenças místicas baseadas em experiências também místicas que, segundo acreditamos, manifestavam ou revelavam sua compreensão básica da relação que tinham com a totalidade da existência. Expressavam essa compreensão por meio de uma deidade – a deusa-mãe – que incorporava e evocava a coerência dinâmica e harmônica de toda a existência numa rede sem fim de ciclos de nascimento e morte.

De modo contrário – segundo pensamos – o povo patriarcal pastoril teve crenças místicas baseadas em experiências também místicas. Estas foram vividas como reveladoras de sua conexão com um âmbito cósmico dominado por entidades poderosas, arbitrárias, que exerciam sua vontade em atos criativos capazes de violar qualquer ordem previamente existente. Os povos patriarcais pastores expressavam sua compreensão das relações cósmicas por meio de deuses – entidades transcendentes que impunham temor e exigiam obediência. Em seu domínio místico, esses povos não tinham nada a defender e, consequentemente, nada a impor: cada crença era natural e auto-evidente. Como entidade cósmica todo-poderosa, Deus era óbvio em sua invisibilidade, e assim inerentemente espiritual.

Com efeito, tinha de ser desse modo, pela forma com que Ele devia ter surgido na montanha, enquanto expressava seu caráter onipotente de patriarca cósmico. As visões místicas matrísticas europeias eram totalmente diversas, dado o seu caráter terrestre. Para os povos matrísticos, os fundamentos da existência estavam no equilíbrio dinâmico do nascimento e da morte, tanto quanto na coerência harmônica de todas coisas, vivas ou não. Não havia nada a temer quando alguém se movia na coerência da existência; para eles não havia forças arbitrárias que exigissem obediência, só rupturas humanas da harmonia natural, devidas a alguma falta circunstancial de consciência e à limitação por ela implicada.

A divindade não era uma força ou autoridade; e não poderia ter sido assim, pois esses povos não estavam centrados na autoridade, dominação ou controle. A deusa-mãe concretizava e evocava a consciência dessa harmonia natural. E, segundo penso, suas imagens e os rituais nos quais elas eram usadas significavam presença, evocação e participação na harmonia de todas as coisas existentes, de uma maneira que permitia que tanto os homens quanto as mulheres permanecessem conectados com ela em seu viver cotidiano. Os povos matrísticos europeus não tinham nada a defender, tanto porque viviam na consciência da harmonia da diversidade, quanto porque não viviam em apropriação.

Logo a seguir, quando os povos indo-europeus patriarcais pastoris invadiram a Europa, seus patriarcas perceberam que não podiam aceitar as crenças, o modo de vida espiritual ou as conversações místicas dos povos matrísticos, pois estes contradiziam completamente os fundamentos de sua própria existência. Assim, preferiram defender seu modo de vida e suas crenças da única maneira que conheciam, isto é, por meio da negação do outro modo de vida ou do sistema de crenças daqueles povos, transformando-os em seus inimigos.

Além do mais, no processo de defender o seu viver místico, os patriarcas indo-europeus criaram uma fronteira de negação de todas as conversações místicas diferentes das suas. E estabeleceram, de fato, uma distinção entre o que passou a ser legítimo e ilegítimo, crenças verdadeiras e falsas. No âmbito espiritual, realizaram a práxis de exclusão e negação que, operacionalmente, constitui as religiões como domínios culturais de apropriação das mentes e almas dos membros de uma comunidade pelos defensores da verdade ou das “crenças” verdadeiras. Contudo, antes de prosseguir reflitamos mais sobre o místico e o religioso.

Uma experiência mística – ou espiritual, como é geralmente chamada na atualidade como experiência de pertença ou conexão a um âmbito mais amplo do que o do entorno imediato de alguém, é pessoal, privada, inacessível a outros, ou seja, intransferível. Portanto, o ato de relatar uma experiência assim diante de uma audiência adequada pode ser algo cativante e sedutor, pois evoca um emocionar congruente em quem escuta, casos em que ocorre a sedução. Mesmo quando não há transferência da experiência, muitos dos ouvintes podem chegar a converter-se em adeptos da explicação do expositor.

Como resultado, pode se formar uma comunidade de crentes. Quando isso acontece, todavia, o corpo de crenças adotadas pelos novos crentes – qualquer que seja a sua complexidade e riqueza – não constitui uma religião. Isso só ocorre se os membros dessa comunidade afirmarem que suas crenças revelam ou envolvem alguma verdade universal, da qual eles se apropriaram por meio da negação de outras crenças, baseadas em outros relatos de experiências místicas ou espirituais.

A apropriação de uma verdade mística ou espiritual que se sustenta como verdade universal constitui o ponto de partida ou de nascimento de uma religião. Requer um emocionar e um modo de vida que não estavam presentes na cultura europeia matrística. Nossa cultura patriarcal europeia confunde religião com espiritualidade. Nela se fala, com frequência, de experiências religiosas como se fossem místicas.

Acredito que essa confusão obscurece o fato de que uma religião não pode existir sem a apropriação de ideias e crenças, e não nos permite ver o emocionar que a constitui. Some-se a isso que o advento do pensamento religioso, por meio da defesa do que é “verdadeiro” e da negação do que é “falso”, é um processo que nos tornou insensíveis para as bases emocionais de nossos atos. Em consequência, nos tornou inconscientes de nossa responsabilidade em relação a eles, e obstruiu nossas possibilidades de entender que a história humana segue o caminho do emocionar, e não um curso guiado por possibilidades materiais ou recursos naturais. Nossa visão torna-se obscurecida para o fato de que são nossos desejos e preferências que determinam aquilo que vivemos como verdades, necessidades, vantagens e fatos.

5 – ORIGEM DO PATRIARCADO – PARTE 2

Façamos agora um paralelo entre as conversações definidoras da cultura patriarcal pastoril e da cultura matrística europeia:

Conversações definidoras da cultura patriarcal pastoril Conversações definidoras da cultura matrística europeia
De apropriação De participação
Nas quais a fertilidade surge como uma noção que valoriza a procriação, num processo contínuo de crescimento. Nas quais a fertilidade surge como a visão da abundância harmoniosa de todas as coisas vivas, numa rede coerente de processos cíclicos de nascimento e morte.
Nas quais a sexualidade das mulheres se associa à procriação e fica sob o controle do patriarca. Nas quais a sexualidade das mulheres e dos homens surge como um ato associado à sensualidade e à ternura.
Nas quais se valoriza a procriação e se abomina qual- quer noção ou ação de controle da natalidade e regulação do crescimento populacional. Nas quais se respeita a procriação e se aceitam ações de controle da natalidade e de regulação do crescimento populacional.
Nas quais a guerra e a competição surgem como modos naturais de convivência, e também como valores e virtudes. Nas quais surgem a valorização da cooperação e do companheirismo como modos naturais de convivência.
Nas quais o místico é vivido em relação à subordinação a uma autoridade cósmica e transcendental, que requer obediência e submissão. Nas quais o místico surge como participação consciente na realização e conservação da harmonia de toda a existência, no ciclo contínuo e coerente da vida e da morte.
Nas quais os deuses surgem como autoridades normativas arbitrárias, que exigem total submissão e obediência Nas quais as deusas surgem como relações de evocação da geração e conservação da harmonia de toda a existência, na legitimidade do todo que há nela, e não como autoridades ou poderes.
Nas quais o pensamento é linear e vivido na exigência de submissão à autoridade na negação do diferente. Nas quais o pensamento é sistêmico e é vivido no convite à reflexão diante do diferente.
Nas quais as relações interpessoais surgem baseadas principalmente na autoridade, obediência e controle. Nas quais as relações interpessoais surgem baseadas principalmente no acordo, cooperação e co-inspiração
Nas quais o viver patriarcal de homens, mulheres e crianças surge, ao longo de toda a vida, como um processo natural. Nas quais o viver matrístico de homens, mulheres e crianças surge, ao longo de toda a vida, como um processo natural.
Nas quais não aparece uma oposição intrínseca entre homens e mulheres, mas se subordina a mulher ao homem, pela apropriação da procriação como um valor. Nas quais não aparece uma oposição entre homens e mulheres nem subordinação de uns aos outros.

Sustento que nossa forma de vida patriarcal europeia surgiu do encontro das culturas patriarcal pastoril e matrística pré-patriarcal europeia como resultado de um processo de dominação patriarcal diretamente orientado para a completa destruição de todo o matrístico, mediante ações que só poderiam ter sido moderadas pela biologia do amor. Com efeito, se quisermos imaginar como isso pode ter ocorrido, tudo o que temos a fazer é ler a história da invasão da Palestina – fundamentalmente matrística – pelos hebreus patriarcais, tal como está relatada na Bíblia.

A cultura matrística não foi completamente extinta: sobreviveu aqui e ali em bolsões culturais. Em especial, permaneceu oculta nas relações entre as mulheres e submersa na intimidade das interações mãe-filho, até o momento em que a criança tem de entrar na vida adulta, na qual o patriarcado aparece em sua plenitude. Num empreendimento de pirataria e domínio, os homens invasores patriarcais pastores destruíram tudo e, depois de exterminar os homens matrísticos, apropriaram-se de suas mulheres. Acredito que estas não se submeteram voluntária e plenamente, o que deu origem a uma oposição na relação homem-mulher que não estivera presente em nenhuma das culturas originais.

Nesse processo, à medida que os homens patriarcais lutaram para submeter as mulheres matrísticas das quais se tinham apropriado, estas resistiram e se esforçaram para manter a identidade matrística. Só cederam para proteger suas vidas e as de seus filhos, mas sem nunca esquecer sua liberdade ancestral. As crianças nascidas sob esse conflito foram e são testemunhas participantes dele. E o viveram e vivem como uma luta permanente entre o homem e a mulher, que acabou por ser vivida como se fosse uma oposição intrínseca entre o masculino e o feminino, também no seio de sua identidade psíquica individual.

Em meio a essa luta, o homem patriarcal, como possuidor da mãe, tornou-se para a criança o pai – uma autoridade que negava o amor ao mesmo tempo em que o exigia. Um ser próximo e distante, que era simultaneamente amigo e inimigo, numa dinâmica que igualava a masculinidade à força e à dominação, e a feminilidade à debilidade e à emoção. Nessas circunstâncias, as mulheres descobriram que seu único refúgio, diante da impossibilidade de escapar ao controle e à dominação possessiva dos homens patriarcais, era conservar sua cultura matrística em relação à sua prole – particularmente, em relação às filhas, as quais não tinham um futuro de autonomia na vida adulta como os meninos.

Além do mais, os meninos da nova cultura patriarcal europeia emergente viveram uma vida que implicava uma contradição fundamental, à medida que cresciam numa comunidade matrística por alguns anos, para depois entrar numa comunidade patriarcal na vida adulta.

Como foi dito anteriormente, essa contradição permanece também conosco, como uma fonte de sofrimento que não percebemos mas que pode ser reconhecida em mitos e contos de fada, e que às vezes é mal interpretada de um ponto de vista patriarcal, seja como uma luta constitutiva entre o filho e o pai pelo amor da mãe – como a noção freudiana do complexo de Édipo -, seja como expressão de uma desarmonia biológica, também constitutiva, entre o masculino e o feminino.

No primeiro caso, a legitimidade da raiva do menino diante de um pai (homem patriarcal) que abusa da mãe (mulher matrística) é obscurecida ao tratá-la como expressão de uma suposta relação de competição biológica entre pai e filho pelo amor da mãe. Na relação mãe-filho matrística não perturbada, a criança jamais tem dúvidas sobre o amor de sua mãe. Também não há competição entre pai e filho pelo amor da mãe deste, pois para ela essas relações ocorrem em domínios completamente diversos. E o homem sabe que essa relação vem com os filhos e que só durará enquanto durar seu amor por eles.

No caso puramente patriarcal pastoril, tampouco há conflito entre o menino e o patriarca, porque este sabe que é o pai dos meninos de sua mulher, e que esta não duvida da legitimidade de sua relação amorosa com ela e com seus filhos precisamente porque ele é o patriarca.

A situação do menino em nossa cultura patriarcal europeia atual é completamente diversa, porque a luta constitutiva matrística patriarcal, na qual ele cresce, não é apenas um aspecto ancestral do mito da criação, mas sim um processo sempre presente. De fato, em nossa cultura patriarcal europeia atual, um menino está sempre em risco de negação: tanto por parte do pai, em sua oposição à mãe, quanto por meio do descuido por parte desta, que vive sob uma permanente exigência. Tal exigência a leva a desviar sua atenção do menino, enquanto pretende recuperar sua plena identidade, chegando ela própria a se transformar em patriarca.

Repitamos isso em outras palavras. Na história de nossa cultura patriarcal europeia, o processo de negação da cultura matrística pré-patriarcal europeia original não se deteve na separação e oposição de uma infância matrística e uma vida adulta patriarcal. Ao contrário – e com diferentes velocidades e distintas formas em diversas partes do mundo -, o impulso para a total negação de tudo o que seja matrístico chegou até a infância. E o fez por meio de uma pressão que corrói continuamente os fundamentos matrísticos do desenvolvimento da criança como um ser humano que cresce no autorrespeito e na consciência social, por meio de uma relação mãe-filho fundamentada no livre brincar, em total confiança e aceitação mútuas.

É claro que esse curso não é conscientemente escolhido: ele é o resultado da expansão da vida adulta patriarcal ao âmbito da infância, enquanto se pede – ou se exige – à mãe e ao filho que atuem segundo os valores e desejos da vida adulta patriarcal. À medida que as exigências da vida adulta patriarcal são introduzidas na relação mãe-filho, a atenção tanto daquela quanto deste se desvia do presente de sua relação. E assim o menino acaba crescendo na desconfiança do amor de sua mãe, pois ela sem se dar conta cede a essas pressões, criando ao redor do filho um espaço de negação no qual seu desenvolvimento humano normal no autorrespeito e na consciência social é distorcido.

No segundo caso, a oposição e a desarmonia cultural que há, no patriarcado europeu, entre os homens patriarcais e as mulheres matrísticas, é vivida como a expressão de uma luta entre o bem e o mal. Na cultura matrística não há bem nem mal, pois nada é algo em si mesmo e cada coisa é o que é nas relações que a constituem. Numa cultura assim, as ações inadequadas revelam situações humanas de insensibilidade e falta de consciência das coerências normais da existência, que só podem ser corrigidas por meio de rituais que reconstituam tal consciência ou capacidade de perceber.

Na cultura patriarcal pastoril, por meio da emoção da inimizade, uma ação inadequada é vista como má ou perversa em si mesma, e seu autor deve ser castigado. No encontro da cultura patriarcal pastoril com a matrística, todo o matrístico se torna perverso, ou fonte de perversidade, e todo o patriarcal se torna bom e fonte de virtude. Assim, o feminino se torna equivalente ao cruel, decepcionante, não-confiável, caprichoso, pouco razoável, pouco inteligente, débil e superficial – enquanto o masculino passa a equivaler ao puro, honesto, confiável, direto, razoável, inteligente, forte e profundo.

Resumamos então esta apresentação em quatro afirmativas, que aludem ao que ocorre atualmente em nossa cultura europeia patriarcal:

♦ Nossa vida presente como povo patriarcal europeu, com todas as suas exigências de trabalho, êxito, produção e eficácia, interfere no estabelecimento de uma relação normal mãe-filho. Interfere, portanto, no desenvolvimento fisiológico e psíquico normal das crianças como seres humanos autoconscientes, com autorrespeito e respeito social.

♦ O desenvolvimento fisiológico e psíquico inadequado da criança que cresce em nossa cultura patriarcal se revela em suas dificuldades de estabelecer relações sociais permanentes (amor), ou na perda da confiança em si mesma, ou na perda do autorrespeito e do respeito pelo outro, bem como no desenvolvimento de diversas classes de dificuldades psicossomáticas em geral.

♦ A interferência no livre brincar mãe-filho em total confiança e aceitação – que traz consigo a destruição da relação materno-infantil matrística – produz uma dificuldade fundamental na criança em crescimento e por fim no adulto, para viver a confiança e o conforto do respeito e aceitação mútuos, que constituem a vida social como um processo sustentado. Crianças e adultos permanecem na busca infinda de uma relação de aceitação mútua que não aprenderam a reconhecer, nem a viver nem a conservar quando ela lhes acontece. Como resultado disso, crianças e adultos continuam a fracassar sempre em suas relações, na dinâmica patriarcal das exigências e da busca do controle mútuo, que nega precisamente o mútuo respeito e a aceitação que eles desejam.

♦ As relações de convivência masculino-feminina são vividas como se existisse uma oposição intrínseca entre homem e mulher que se torna evidente em seus diferentes valores, interesses e desejos. As mulheres são vistas como fontes de perversidade e os homens como fontes de virtude.

O conflito básico de nossa cultura europeia patriarcal não é a competição do menino com o pai pelo amor da mãe como nos leva a crer a noção do complexo de Édipo. Também não é a desarmonia intrínseca entre o feminino e o masculino suposta nessa noção, e também nas terapias que nos convidam a harmonizar nossos lados feminino e masculino. A raiva do menino contra o pai, conotada no complexo de Édipo, é reativa à sua observação das múltiplas agressões dele, pai, contra a sua mãe. O menino cresce com essa raiva, negando-a, pois é também ensinado a amar o pai como a fonte de tudo o que é bom, embora perceba, em seu cotidiano, que é tanto no domínio prático quanto no emocional da patriarcalidade paterna que está a origem da contínua negação dos fundamentos matrísticos de sua condição humana como ser social bem integrado.

Ao mesmo tempo, a oposição entre o homem e a mulher – que vivemos em nossa cultura patriarcal europeia – resulta da oposição sem fim entre o patriarcal e o matrístico que a criança começa a viver em tenra idade, ao ouvir as mútuas queixas maternas e paternas próprias da oposição das conversações patriarcais e matrísticas, incluídas em nossa cultura patriarcal europeia. O conflito básico de nossa cultura patriarcal europeia está, ainda, na luta entre o matrístico e o patriarcal que a originou, e que ainda vivemos de modo extremo na transição da infância à vida adulta, como logo veremos.

As mulheres mantêm uma tradição matrística fundamental em suas inter-relações e no relacionamento com seus filhos. O respeito e aceitação mútuos no autorrespeito, a preocupação com o bem-estar do outro e o apoio recíproco, a colaboração e o compartilhamento – eis as ações que orientam fundamentalmente seus relacionamentos. Ainda assim, as crianças, homens e mulheres devem tornar-se patriarcais na vida adulta, cada um segundo o seu gênero. Os meninos devem tornar-se competitivos e autoritários, as meninas serviçais e submissas. Os meninos vivem uma vida de contínuas exigências, que negam a aceitação e o respeito pelo outro, próprios de sua infância. As meninas vivem uma vida que as pressiona continuamente para que mergulhem na submissão, que nega o autorrespeito e a dignidade pessoal que adquiriram na infância.

A adolescência e seus conflitos correspondem a essa transição. Os conflitos da adolescência não são um aspecto próprio da psicologia do crescimento. Eles surgem na criança que enfrenta uma transição, na qual tem de adotar um modo de vida que nega tudo o que ela aprendeu a desejar na relação materno-infantil das relações matristicas da infância, que corresponde aos fundamentos de sua biologia.

Em outras palavras, a rebeldia da adolescência expressa o nojo, a frustração e o asco da criança que tem de aceitar e tornar seu um modo de vida que vê como mentiroso e hipócrita. Esse é o cenário em que vivemos nossa vida adulta na cultura patriarcal europeia. É nele que estamos como homens e mulheres, como homens e homens, como mulheres e mulheres. É onde, na maior parte do tempo, vivemos nossa convivência como um contínuo confronto de dominação, qualquer que seja o âmbito de coexistência em que nos encontremos. Além disso, mergulhamos nessa luta ou confronto sem nos darmos conta, como um simples resultado da convivência com nossos pais patriarcais europeus, e não necessariamente em resposta ao seu desejo explícito de que assim seja.

Esse modo de viver resulta simplesmente de nossa participação inocente no fluxo das conversações de luta e guerra em que submergimos ao nascer: conversações de luta entre o bem e o mal, o homem e a mulher, razão e emoção, desejos contraditórios, matéria e espírito, valores, humanidade e natureza… entre ambição e responsabilidade, aparência e essência. Crescemos imersos nessas conversações contraditórias; vivemos desgarrados pelo desejo de conservar nossa infância matrística e satisfazer os deveres de nossa vida adulta patriarcal. E por isso precisamos de terapias, para recuperar nossa saúde psíquica e espiritual, mediante o resgate do respeito por nosso corpo e emoções na harmonização, como se diz, de nossos lados masculino e feminino.

Entretanto, esse conflito – que aprisiona nosso crescimento como crianças da cultura patriarcal europeia – é também nossa possibilidade de entrar na reflexão e sair da armadilha da luta contínua em que caímos com o patriarcado.

Não há dúvida de que o patriarcado mudou de modo diferente em distintas comunidades humanas, segundo as diversas particularidades da história destas. Assim, a posição da mulher, no lar ou fora dele, ou a escravidão como forma econômica de vida, ou a maneira de exercer o poder e o controle, modificaram-se de modos tão diferentes, nas várias comunidades, que podemos falar delas como subculturas patriarcais diversas. Continuamos a chamá-las de patriarcais, porque nelas se conservou a rede fundamental de conversações que as constitui dessa maneira.

Só o aparecimento da democracia foi de fato uma ameaça ao patriarcado, porque ela surge como uma expansão das conversações matristicas da infância de uma forma que nega as conversações patriarcais. Desse modo, o fato de que o patriarcado tenha seguido muitos caminhos distintos, em diferentes comunidades humanas, não nega a validade de meu argumento. O patriarcado ocorre no domínio das relações humanas como um modo de ser humano; não é uma forma de vida “econômica”, é uma maneira de relação entre seres humanos, uma modalidade de existência psíquica humana.

Como dissemos na introdução a estes ensaios, o patriarcado surgiu como uma mudança na configuração dos desejos que definiam nosso modo de coexistência em meio a um viver matrístico. Só uma nova modificação na configuração de nossos desejos, em nossa coexistência, pode levar-nos a uma transformação que nos tire do patriarcado. E ela só nos poderá acontecer agora se assim o quisermos.

Índice

 

Itinerário 1

Padrões autocráticos

Modulo 1

Modulo 2

Modulo 3

Modulo 4

Modulo 5

Modulo 6

Modulo 7

Modulo 8

Modulo 9

 

Itinerário 2

Objeções à democracia

Modulo 1

Modulo 2

Modulo 3

Modulo 4

Modulo 5

Modulo 6

Modulo 7

Modulo 8

 

Itinerário 3

Textos clássicos

Modulo 1

Modulo 2

Modulo 3

Modulo 4

Modulo 5

Modulo 6

 

Itinerário 4

Modo-de-vida

Modulo 1

Modulo 2

Modulo 3

Modulo 4

Modulo 5

Modulo 6

Modulo 7

Modulo 8

 

Itinerário 5

Indicadores

Modulo 1

Modulo 2

Modulo 3

Modulo 4

Modulo 5

Modulo 6

Modulo 7

Modulo 8

 

Itinerário 6

Textos recentes

Modulo 1

Modulo 2

Modulo 3

Modulo 4

Modulo 5

Modulo 6

Modulo 7

Modulo 8

Modulo 9

Modulo 10

 

Itinerário 7

Na sociedade em rede

 

Itinerário 8

Democracia e inovação

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